terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Prêmio Dardos


O blog acabou temporariamente. No entanto, permane no ar, para quem tiver interesse em ler sobre as minhas vivências em Angola durante o ano de 2008. Havia muito mais a ser escrito, dito, mostrado, e acredito, vivido, tenho alguns esboços que comecei a escrever e acabei não postando. Eis que, neste veríodo de transição, o blog foi reconhecido pelo Diário da África como merecedor do Prêmio Dardos. Agradeço imensamente a indicação e fico muito honrado.

Transcrevo o texto que acompanha a distinção:

"Com o Prémio Dardos reconhecem-se os valores que cada blogger, emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc. que, em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os bloggers, uma forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web. Este prémio obedece a algumas regras:

1) Exibir a imagem do selo;

2) Linkar o blog pelo qual se recebeu a indicação;

3) Escolher outros blogs a quem entregar o Prémio Dardos."

Os meus indicados:

domingo, 21 de dezembro de 2008

A Retirada

Não me neguei nada que os meus olhos desejaram;
não me recusei a dar prazer algum ao meu coração. (Ecl 2,10)

Este é o fim. A metáfora simples e sem elaboração do círculo fechando-se novamente, ano após ano, quando inicia-se a retirada, a revoada, o delírio migratório, o desalojar-se ou sei-lá-mais-o-quê, arranjar tudo nas malas, os presentes, as recordações de tempos que já foram e que ficarão guardados no baú das memórias que é o que chamamos de saudades e aperto no coração, os livros não lidos, jogar fora as anotações, as tralhas, os cupons fiscais, os mapas, abrir a sua agenda e encontrar uma foto em tons de sépia de uma aborígene que de repente entrou em sua vida, não bastasse a anamnese ser dirigida e eu vou escarafunchando sobre os costumes locais: segue-se toda uma história de perímetro de chineses e asfaltagens e órbitas, o senhor curou-me e devo-lhe a minha vida e por acaso a sua doença tem cura (não neste tom e com estas palavras) e eu por acaso sou onipresente minha senhora? virou minha paciente e eu que queria tê-las todas ao meu lado para o retrato da posteridade e vejo-me agora com ela e sua filha recém-nascida, ão há ninguém para ser testemunha ocular desta cena, somente eu e meus sonhos, a criança envolta em panos a boca procurando o alimento proibido pode pegá-la doutor, gostou do senhor, mas não tenho jeito com crianças, mas falávamos sobre retiradas, não é isso? sobre

voltar para casa,
mãe
ter pátria novamente
pai
volte
andar pelo centro descompromissadamente, pedir na padaria da esquina um sanduíche de pão com queijo branco e café com leite, rever os amigos, porque aí haverá um final de tarde na sacada de um prédio milimetricamente quadriculado, sob um sol que nunca apareceu mas sabemos que já se pôs e é nessa palheta de sombras que tudo será revelando quadro a quadro, sempre e cada vez mais e sentindo a acidez de uma discussão sobre Bergman e o sofrimento e a náusea que um Chet Baker pode causar – já imaginou umas velas iluminando e derretendo vagarosamente esta cena? E então é assim que entramos rapidamente na noite escura, quando retiro-me, arrumo as malas, empacoto os seus discos e os meus livros, apago do computador as memórias borradas e persecutórias de uma África que sempre tinha visto em fotos, algumas imagens valem mais que mil palavras, mas nem um dicionário com todos os sinônimos do mundo, em todas as línguas possíveis e inventadas seria capaz de expressar o que vi, senti, o que vivi e o que deixei de fazer, os sonhos, as frustrações, as angústias, os desejos e as partidas, o estar sozinho, a ausência de um retorno às chamadas telefônicas, meu escapismos dos dias turbulentos, minha sombra catártica das três da tarde, minha vontade de vomitar tudo e dizer gostei de você assim, a lágrima de quem menos espera-se, imaginar a sua vida uma biblioteca sem fim em que todos os livros são réplicas cortazianas do jogo infantil das pedrinhas (rayuella lembra arruela, a peça chave que segura a volta do parafuso, de maneira que tudo permaneça fixo, estável) e cada livro será um dia na sua vida frouxa na minha vida escapada na vida de todos nós e apenas o direito a uma situação, um ponto de partida, uma vivência, uma decisão, sim e não, direita ou esquerda, para cima ou para baixo e todas as situações decorrentes partirão deste marco zero, deste capítulo um, era um dia de sol e ele levantou-se, a partir de então começo, meio e fim, fim do dia, chega-se ao final e ele fechou os olhos e dormiu sonhos sonhados, para no dia seguinte retirar outro livro, o mesmo capítulo um, a sua escolha já foi feita, continuará a ser um dia de sol, mas a história seguirá pelo miolo, rumará para o final e voltará para o início, trata-se de uma outra leitura, não sei se prazerosa ou não, a mesma história os mesmos personagens, um novo caminho, que porra é o livre arbítrio, ter que escolher e afrontar (um tapa) e enfrentar (um soco bem no meio do estômago) as consequências (meu mundo cartesiano), brincar de cabra cega em terra de cegos, no terceiro dia ainda fará sol e no quarto dia haverá o mesmo capítulo solar. E todos os fins de tarde daqui para frente serão aquelas sinfonias de cigarras descompassadas presas as acácias em frente ao jardim de casa, depois a chuva e o cheiro de terra molhada.


x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-FIM DO BLOG-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Três temas candentes

III. Os trópicos (luz do sol)
(às memórias de RR, já do outro lado)

O viajante depara-se com uma vitrine cheia de jóias, mas há uma em particular que prende a sua atenção logo que foca o olhar. Trata-se de um anel pequeno, bem delicado, de tom azulado, e com uma pedra incrustrada, será um rubi?

Melhore o foco, diz o técnico

surpresa maior quando aproxima-se da vitrine e percebe que o seu tesouro de deleite

– Pois então, doutor, trofozoítas, dois por campo,

nada mais que uma das formas do agente etiológico da malária, Plasmodium sp ou achavam que eu entendo de pedrarias?

Vejamos, recapitulação de uma outra negligenciada. No início a histeria coletiva do repelente, com a sua nuvem densa, asfixiante e pegajosa de permetrina, capaz muito mais de afastar quem está ao seu lado que o próprio anofelino, a chegada neste lado de cá, uma manhã bem quente já às cinco e trinta, a nuvem de mosquitos no aeroporto, a confusão toda à la Sir Livingstone logo na imigração, malas, passaportes, vistos, cartão de febre amarela, podemos ter todas as doenças menos esta, faça-me o favor doutor, endereços, saudades, solidão, ainda faltam 364 dias, então isto é a África? mas assim de repente? então tchau, depois “ser picado”, doutrina corporativista médica apanágio de todos os sintomas (im)possíveis e (in)imagináveis, paludismo para tudo e para todos com diarréia, tosse, unha encravada, mau olhado, saudades de casa e esquisitices outras, malária é para os casos graves, no final o anel continua sendo o mesmo, o fato é que brilha mais e intensamente em outras direções, querendo dizer que os órgão acometidos já serão outros. E se não for apenas uma questão de ótica o que é ouro de tolo – entenda-se artefato do exame – ganha cumprimentos de uma alquimia e transforma-se em mais anéis e daí começa-se a entender o porquê da resistência do plasmodium aos antimalarianos, será que porque os prescrevemos e-x-a-g-e-r-a-d-a-m-e-n-t-e ou porque só queremos e conhecemos este diagnóstico? Assim foram os primeiros trinta dias, as noites tchowkes, a ordem natural das coisas, com as suas espirais de permetrina queimando calmamente no quarto de hotel e lançando o seu fumo fétido e que impregnava toda a roupa e mala e idéias. Assim vieram os cem dias, muita saudades, a novidade dos mosquiteiros no meio do oásis sub-sahariano, as enfermarias miasmáticas com seus doentes quinínicos, o pavio da vela etc etc etc, aquela questão da Rosa Náutica ficou para trás, tenha (tinha, terei, tive) a certeza disso (ou não). Assim vieram mais trinta dias, as mumuílas autênticas peregrinando entre as paredes de mosquiteiros, uma pilha de “modos de montar” flanando na poeira do Lubango, os mosquiteiros doados pelos organismos internacionais, as prateleiras de coartem de todas as cores e sabores no memorial fúnebre das onze horas e passando pelo assassinato no hospital sem manual de instruções no Sumbe (estes chineses), revivendo os fumos saudosos transoceânicos depois de ter sido carregado às pressas para o quarto de hotel por uma nuvem de anofelinos, aqueles apontamentos malucos permeados de entrelinhas, de conversinhas paralelas e cifradas, aquele congresso internacional de restolhos do bloco socialista, o fumacê no condomínio, porque

Todas as canções que canto são para você, cariño

- Convulsionou, agora está delirando . . . deve ter comprometimento cerebral
- Então vamos prescrever artesunato endovenoso porq
- Não tem, não há, aqui não é assim

E então ele, que já vinha morrendo lentamente e desde sempre, que isolou-se com a família nas matas nos tempos da guerra, que sobreviveu às estacas de duas cores, onde a trilogia tchowke estava na parte dois, isso em Saurimo, das duas crianças que morreram de complicações do sarampo, morreu ali, na minha frente, eu de braços cruzados, atônito, perplexo, o capinzal amarelinho nos fundos do hospital metralhado coreografando aquela morte feliz e hedionda, vomitada de uma só vez sob o sol das doze horas (a metáfora solar), eu revirando a maleta de primeiros socorros na caminhonete (só tem dipirona), eu continuando a não entender mais nada eu querendo o beijo da minha mãe, a mãe chorando no corpo molhado de suor, o suor escorrendo da minha testa, as mumuílas aculturadas e azedas chorando na minha frente porque o teste é positivo, três horas arrebentando a coluna e as idéias na estrada minada, sete horas vezes não sei quantos dias mais para chegar até o beijo, cantei uma última vez para você e você não entendeu, o corpo sendo embrulhado com as veias entupidas de anéis. Eu de braços cruzados pensando trezentos dias para trás. Ou teria sido tudo apenas uma questão de ótica?

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Três temas candentes

II. Sobre a medicina tradicional (o poder da cura)
A medicina tradicional sempre será a antítese de tudo o que aprendi durante a minha formação como médico, desde a objetividade das dissecações anatômicas ou dos cães de Pavlov dos primeiros anos de faculdade até as intermináveis cirurgias digestivas com suas vogais elípticas e os sintomas dos pacientes desordenados que não estavam nos tratados durante a residência médica. Não que eu tenho deixado de aprender. Aliás, sempre, e muito, ainda agora deste lado de cá. Antítese porque esta medicina que aprendo continuamente, baseada em conceitos bioquímicos, na farmacologia das drogas, na história natural das doenças (final feliz este o das doenças infecciosas pré aids, quando na maioria das vezes os pacientes curavam-se ou com sequelas mínimas) e baseada em evidências e que quer ser a mais racional possível vem agora a se juntar com o poder da cura de uma outra medicina, a medicina tradicional, a que sempre quis negar (embora de interesse sociológico e cultural) e que agora tenho que aprender. Medicina baseada em conceitos muito menos palpáveis (alguns não), como a fé (sim, é preciso ter), o “acreditar no sagrado”, nas raízes milenares e nas raízes trituradas no pilão de pedra, nos simbolismos e nos arquétipos, nos xamãs, nas dançarinas mukanda e seus rituais de circuncisão (nada mais que ritos de passagens), no poder das pedras, nas cabeças secas de animais dependuradas no kimbandeiro, nos emplastros, nos chás abortivos, nas escarificações terapêuticas, nas agulhas comunitárias, nas mutilações femininas, imaginar-se tentando explicar a uma mãe de cinco filhos HIV positiva, analfabeta, que precariamente esboça o português (ou serei eu o analfabeto, que mal consigo esboçar um "você está bem" em kimbundo?), cuja renda mensal é menor que 100 dólares, explicar que o ideal é não amamentar o seu filho recém-nascido no seio e sim alimentá-lo preferencialmente com leite artificial (uma lata sai por 30 dólares e não é suficiente para uma semana) é esforçar-se muito, não era esta a medicina que eu conhecia, aprender, a criança não morre de aids porque a história natural desta doença é interrompida pelo banho de cólera, quem lembrou de garantir a água filtrada no preparo do leite? E então eu deixo de racionalizar e fico consternado, aprender, quando abro o Jornal e leio que uma distinta senhora dita "doutora em medicina" cura os pacientes soropositivos [VIH positivos] com injeções de pentamidina, seguido de depoimentos dos projetos de Lázaros incentivando charlatanices para todas as direções, doenças e mau olhados. Porque são muitas as vezes que estes ditos usam-se das práticas tradicionais, julgando-se doutores kimbandeiros, para afirmarem terem a cura de doenças cujo horizonte clínico não são mais do que tênues linhas alaranjandas no céu das seis da tarde. Aprender. Mais algumas vezes.




domingo, 16 de novembro de 2008

Três temas candentes

I. Óbitos (fim de partida)

Morre-se sempre e em qualquer lugar. As causas são as mais variadas e de fundamental importância, haja visto as estatísticas gritantes, aceleradas e recentes dos órgão internacionais. Pode-se morrer por complicações decorrentes do infarto agudo do miocárdio, de choque séptico por gram negativo numa puérpera cujo obstetra esqueceu-se de trocar as luvas (sim, Semmelweiss, isto ainda acontece), de malária cerebral (os trópicos), de choque hipovolêmico por diarréia colérica (as águas salobras que escorrem pela Baixa), de insuficiência respiratória por pneumonia lobar com derrame pleural por Staphylococcus aureus, traumatismos externos (acidentes automobilísticos, paixonites agudas e afins, entenda-se afundamento da calota craniana com perda de massa encefálica), morre-se de morte morrida, de desgosto, de saudades, de solidão, por amor, envenenando-se um ao outro numa ciranda interminável de paixões, pulando em alto mar atrás de um corpo, atirando-se em frente da locomotiva, recebendo envelopes roxos, por quê não estudou-se ainda a função social das pontes e viadutos na vida abreviada dos suicidas? Tudo isto para lembrar que há muito tempo morreu-se na Rainha Ginga e pela sacada do prédio decrépito viu-se o cortejo fúnebre arrastando-se pelo engarrafamento nosso de cada dia, a família do morto seguindo logo atrás remoendo as dores entre lágrimas de uns e o canto invertido das zungueiras carpideiras que também carregavam os seus mortos pescados na Corimba desde cedo. Num outro momento, em Saurimo, enquanto íamos à pé para o hotel passamos em frente a uma casa, era uma segunda-feira nublada, a família do morto reunia-se embaixo de uma frondosa mangueira, imperava um silêncio ruminoso e triste, um silêncio cinza, cinza ficou o céu por seis meses, o cacimbo, o funge cozendo lentamente na panela, os parentes dos parentes, os amigos dos amigos, o retrato do morto (jovem, muito jovem) na mesa com uma toalha de cetim roxa, uma senhora com todos os seus panos negros sentada com o olhar imóvel, numa outra oportunidade em Sumbe o morto sendo retirado da morgue assim mesmo, nu, com os curativos no abdome, um pano esgarçado cobrindo-o e colocado na carroceria da caminhonete, as cinco mulheres gritando desesperadamente, a rua de terra batida levantando toda a poeira possível que nem a senhora albina seria capaz de conter com sua vassoura de piaçava estraçalhada, todos os dias nas páginas do Jornal, fulano de tal faleceu, deixa saudades, familiares cumprem o doloroso dever de participarem o falecimento de etc etc etc. Tudo isto para lembrar que o óbito por vezes é uma instituição angolana difícil para a compreensão do estrangeiro, sejam pelos dias de trabalho perdido, pela maneira como a morte é encarada ou como morre-se por aqui.

sábado, 4 de outubro de 2008

Quatro ou cinco apontamentos sobre Sumbe, capital política do Kwanza Sul

Não são sobre quatro ou cinco apontamentos sobre Sumbe, capital política do Kwanza Sul que preciso falar,

nem da sua praça que é varrida todos os dias por uma senhora albina trajando um avental amarelo e um chapéu laranja parecendo por vezes um fantasma amedrontador da meia noite, noite e neblina, praça esta sem cor a da revolução sustentada pelos ícones de outras épocas, o cheguevarra borrado e os estáticos heróis nacionais, o doutor Agostinho Neto, a praça do casal antigo e embotado de todos os dias às oito horas da manhã, açoitados pela lama e chuva do dia anterior, na praça sem cor da revolução, erguida por edifícios retilíneos (possivelmente sempre, a guerra não foi lutada por aqui), modernos (já foram) e embolorados (relíquias de museus da guerra civil a céu aberto que são estes municípios do interior),

muito menos falar sobre a memória encalhada de um navio apodrecido desde algum dia nas águas calmas e salobras de Porto Amboim, município pesqueiro e do extrativismo do sal distante 70 quilômetros de Sumbe, o navio “D...MER MA...IA C5...6”, com a identificação manca dificultando o entendimento de sua procedência, painel de fundo para a fotografia de tempos que ficarão como tudo aquilo que poderia ter sido e que não foram, tempo rendido aos prazeres de noites solitárias, tristes e impermeáveis, sem qualquer amálgama que unisse toda essa massa consumida, de luas que entram pela janela do quarto e que inundam o coração de memórias secas, envelhecidas, e encalhando todos os sonhos sonhados e ... talvez ... se uma lágrima pudesse instablizar esta lata velha oceânica, quem sabe ...

- Veja só, você foi aquela felicidade clandestina dos famintos que mordem o naco de pão depois de terem percorrido o longo deserto, a sensação quente de qualquer aperto ou carícia depois da longa ausência, mas tudo isso dura pouco, porque a clandestinidade só é sustentada por certos períodos e promessas de amores sem fim, caminhos cruzados e todo o blá blá blá sentimentalóide que você quer que eu engula como se fosse uma iguaria nababesca e amanhã ou depois diremos adeus e adeuses, é melhor dizer adeus quando estamos de partida para evitarmos não-ditos mais para a frente e à frente está a enigmática Igreja geométrica que já ficou para trás, vigiando toda a costa, diametralmente oposta (quantas idéias baratas) ao Farol metralhado e que não orienta mais nada, (e olhe só que o casal comunicou-se muito pouco)

e nem mesmo das personagens babilônicas desta representação torpe e sem sentido que vem a ser estardesteladodecá, senhoras e senhores, ladies e gentlemen, as principais novidades deste circo dos horrores: o caubói russo à la harleydavidson e sua trupe de doutoras hermanitas e cubanas (“mucho gusto, yo soy lo remordimiento triste de Silvio Rodriguez, el cantante cubano que . . . bien, yo te estraño, cariño”), o casal trans-siberiano interrogativo e tão orientados quanto um avião de papel que aprende-se a dobrar logo nos primeiros anos de vida, o maratonista oriental com sua maleta 007, a última tecnologia em armazenamento de dados e um carro sem gasolina, suba aí, vamos para o mesmo lugar, a senhora vietnamita com seus chás cardiotônicos para indicações psíquicas e outros chistes (aplausos) e além, é claro, de uma amostra dos de sempre: os pescadores, as zungueiras, as crianças, os cachorros vadios, as galinhas, o peixe seco, o homem desconfiado, quilos de banana, quilômetros de estrada, imbondeiros, abacaxis, a polícia, chineses, brasileiros, expatriados de maneira geral, batatas da terra, carvão, a televisão estatal, bilhetes cancelados, lagostins, poeira, desminagem, mais crianças, escombros, carvão, arquitetura colonial, etc etc etc inúmeras vezes, misture uma porção de cada e deixe cozendo em fogo brando por trinta longos sóis e terá-se o leitmotif desta música triste que é estar neste lado de cá. (talvez nem fosse sobre Sumbe que precisasse falar, mas apenas exorcizar as águas profundas destas baías turbulentas).

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O perímetro das mumuílas

Preâmbulo
As histórias são muitas outras ainda, como a do hospital em Chibia, na Huíla, cuja ruas estão sendo asfaltadas pelos chineses e delimitando todo o perímetro no qual as mumuílas circularão pelas próximas semanas, cercando-as e deixando-as incomunicáveis, afinal,

– O cacimbo não foi tudo isso? O tempo do isolamento, dos três meses de seca, de agonia, de aperto, do céu nublado até as quatro da tarde, do sol das 16:59 que esconde-se novamente às 17:20, o tempo seco e cinzento das manhãs de junho e dos fins de tarde de agosto, o da incomunicabilidade, o dos silêncios velados? O tempo das partidas constantes, dos adeuses não ditos e esquecidos, as lágrimas que nunca saem mas estão lá na iminência da tempestade, o tempo da longa espera da tartaruga de patas para cima . . .
as quatro ruas que delimitam o perímetro urbano do município da Chibia, distante 42 quilômetros de Lubango (capital provincial), remetem-nos à época da colônia, quando o ajuntamento de casas, pessoas, histórias, (falta de) idéias, sonhos, frustações, poeira, mofo, fins de tarde nublados e noites frias, sóis, bandeiras da UNITA às seis da manhã, falta de água, cólera, paludismo, cabras, gado na estrada, devaneios, kimbos, lamentos sem umidade, mumuílas e pessoas conviviam pacificamente e tudo regido pelas suas leis no que era conhecido como Vila de João de Almeida. Porque o município percorre lentamente a sua órbita, dentro das suas próprias leis da física, que invertem a atração dos corpos facilitando a ocupação do mesmo espaço por mumuílas e forasteiros.

A cartografia do desejo
Este município é delimitado – e se depender dos chineses por pouco tempo – por quatro ruas. Na primeira rua, para quem chega pela estrada de terra esburacada e empoeirada, temos algumas casas antigas emboloradas por fora, com resquícios de pinturas em tons pastéis, algum comércio que vende tudo acima do câmbio oficial, a agência bancária e a casa de um senhor que faz ligações de longa distância.

A segunda rua – paralela à primeira – é onde concentra-se a polícia (Comando Geral de Chibia), a escola do ensino médio, de paredes vermelhas e o telhado de chapas de ferro descontínuas e oxidadas pelas chuvas torrenciais de março e que um dia foi um silo de grãos, além é claro, do serviço de saúde (Hospital Municipal de Chibia), o motivo principal de tudo isto aqui.
A terceira e quarta ruas, transversais às primeiras, alocam a Igreja, a Direção Administrativa com sua mesa interminável, as cortinas rosas com babados de renda amarela e as flores de plástico com defeitos na rebarba, os chineses e suas fotocopiadoras Konica e seus cenários de praia paradisíaca, deserta e pouco provável circundada por coqueiros azuis e gaivotas de madeira. Como esquecer então da pensão descompassada onde nada funciona, tudo é moroso e dos tremores sem fim dos funcionários palúdicos nas noites frias esaudosas de junho?

As órbitas
Isto seria tudo. A semana teria acontecido dentro das conformidades, sem maiores imprevistos, tudo ao seu tempo, lógica, não fosse a asfaltagem de todo o perímetro onde está localizado o Hospital Municipal da Chibia. O alvoroço foi descomunal. As crianças não sabiam se corriam atrás do caminhão de piche, se carregavam um pouco do magma betuminoso para dentro de casa e o adorassem como relíquia arqueológica ou se continuavam a empurrar os seus carrinhos de rodas de latas de tomate e eixos de cabides desmontados em meio às máquinas e sirenes dos tratores. As mulheres mumuílas permaneciam interrogativas à toda situação sem saber o porquê e o para quê de toda aquela confusão, embora uma delas – motivo de meus devaneios antropológicos (ou seria delírio persecutório?) – tenha deixado de lado no dia seguinte a sua atitude contemplativa perante o caos dos chineses e tivesse colocado a mão na enxada e ajudado a cavar um fosso para a tubulação do esgoto para o saneamento do dejetos do hospital, cavado em boa parte na base da enxada e do olhar fixo, vago, sedento e esfomeado dos seus três filhos.

A etnia dos mumuílas é uma das tribos que habitam esta região sudoeste de Angola. As mulheres mumuílas sempre estiveram presentes no hospital, anteriores à minha passagem, durante os trabalhos da semana e certamente por muito tempo após a minha partida. Diariamente elas visitam os seus tios com paludismo dentro da enfermaria sufocante de paredes sujas de terra e com o fio de luz tremido borrando as sombras dos doentes. Velam suas panelas extravazadas de maína (funge e leite azedo) e latas de água na sala de espera improvisada de troncos de eucaliptos em frente ao hospital. Contorcem-se silenciosamente nas dores do parto. Recebem o mosquiteiro das enfermeiras. Entregam seus filhos sem saber o porquê ao sacrifício das gotas da vacina da polio. E subitamente desaparecem para os kimbos. Para retornarem a velarem seus tios, visitarem suas panelas, contorcerem-se nos mosquiteiros todas as noites, receberem os seus filhos e reaparecerem durante a minha passagem.

Deparar-se com estas mulheres coloridas estimula qualquer tipo de devaneio antropológico e pode alterar toda órbita de quem aproxima-se delas, porque assim que o motivo impressionista começa a delinear-se (quem percebe quem e o quê) ambos começamos a encarar e despir-nos: eu de camisa branca, calça chino verde, cinto de fivela marrom (“está magro, meu filho, não precisava ter ido tão longe, nós te amamos tanto...”) e um óculos de sol numa tentativa infeliz de enxergar tudo com outros olhos. Ela, de sapatilhas rosas (relicários ocidentais), as samacacas (panos) numa mistura de cores e formas geométricas amarradas na cintura, com toda a capa de poeira e sujidade possível nos colares de miçangas cruzados entre os seios e na cintura. Ainda, outro adorno no pescoço de contas vermelhas e amarelas, pedras e conchas, além da mistura improvável de estrume e gordura de boi e óleo de ervas que divide em quatro mechas os cabelos, conferindo-lhes brilho e odor nauseante. Se pudéssemos tocaríamos um no outro, sinta a minha pele, tenho 60 anos e ela continua lisa, sinto é o seu cheiro, fale a minha língua, desculpa mas eu não sei falar este dialeto, então entenda o meu sofrimento, deixa-me fotografar com a senhora, quero kwanzas, não tenho, fico sem te fotografar, ou melhor de capturar num assalto e ficamos por isso mesmo. Subitamente despiu-se e veio para a fotografia. Talvez porque tivesse ingerido muito mais bulunga que habitualmente (fermentado de cana-de-açúcar e ervas utilizado em rituais). Porque estava feliz. Porque carregava o seu neto recém-nascido A senhora em questão carregava o seu neto recém-nascido nos braços e o levava para casa. Não, não nos tocamos, somos estranhos demais uns aos outros e para comigo.

As leis da física
No final da semana a asfaltagem de Chibia ainda não havia sido concluída. Soube-se que dentro de uns poucos dias chegariam o governador provincial e o ministro de uma pasta aí para inaugurarem a barragem municipal, também impedida de ser fotografada. Sobraram os chineses, alheios a tudo e metidos nos seus próprios eixos de rotação, desconhecendo desviar a órbita das mumuílas e permitindo-se a todo o desejo possível, inclusive o de ser fotografado.

domingo, 10 de agosto de 2008

A memória da guerra (O sol depois das onze horas)

“Esquecer eu não consigo
O massacre de Kifangondo
Ali morreram camaradas
Ali morreram angolanos (...)”

(Massacre de Kifangondo, David Zé)

Perguntar sobre as histórias de guerra em Dembos de Quibaxe, município da província do Bengo, aos seus moradores assustados, arredios e muitas vezes contemplativos, como sempre nestas terras de cá, é fazer com que relembrem de tempos azedos. Parece que essas épocas foram sonhos interrompidos, como os sonhos dos que acordam vagarosamente com o lamento triste das cabras cegas sob a neblina pesada das cinco horas da manhã. Parece que foram famílias estilhaçadas em abraços e abraçadas pelas armas dos camarada.

Vagarosamente também é a cristalização destas memórias, materializadas conforme a serração pesada da floresta tropical cede espaço ao sol monocromático das onze horas da manhã. A estrada de terra principal, que um dia foi asfaltada e onde as senhoras brincavam com seus filhos,

Aquele imóvel um dia foi um snooker bar, o ponto de encontro onde os senhores discutiam os rumos da política lambendo-se uns aos outros entre copos de Cuca e descascando o amendoim a partir das onze horas da manhã e que hoje não passa de um barracão escorado por vigas de madeira e o telhado descontínuo que o mesmo sol memorial ilumina e esclarece que o jogo no tabuleiro precisa ser terminado. (E neste momento a senhora que passa deve estar perguntando se a cisterna já foi abastecida para poder cozinhar os alimentos, lembrem-se da Kimbita),

A administração municipal, o que restou do prédio imponente e de estilo colonial, no ponto mais alto da cidade e estrategicamente empilhada no final da rua? Hoje não passa de uma casa mal assombrada onde o capim cresce por entre as telhas de barro musguentas, o pouco das vidraças apedrejadas que sobreviveram às mãos marotas dos irmãos deixando a fachada ainda mais decrépita,

O paiol de armas, o seu esqueleto enferrujado, todo reumático, a tentar manter-se de pé entre os figurões da luta armada hoje em pé de guerra com o grito de desespero das vozes dissonantes (“se nós estamos a insistir na paz, porque é uma aspiração genuína e profunda de nosso povo”),

Enfim, tudo o pouco e sem palavras que pôde ser visto neste memorial fúnebre das onze horas da manhã.






sábado, 12 de julho de 2008

Desminagem, a estaca de duas cores

“Removidas mais de duas mil minas na província do Kwanza-Sul”
(Jornal de Angola, ano de 2008)
. . .
Explicação: Quando uma possível área com implantação de mina antipessoal é encontrada pela equipe de desminagem (os chineses estão nessa também junto com a tecnologia russa) afixa-se uma estaca de madeira com a ponta pintada de branco. Pode ser próximo a uma ponte derrubada, um estabelecimento governamental bombardeado ou restos de artilharia de guerra. Nos cerca de 200 km entre Saurimo e os municípios de Kakolo e Muconda, na Lunda Sul observa-se que, além das estacas brancas existem outras com uma faixa adicional vermelha, indicando que a área está livre de minas. Mesmo as estacas brancas não impedem que as crianças continuem brincando nos destroços de tanques de guerra, as lavadeiras coando a roupa no leito dos rios ou os homens cuidando da lavra de mandioca ou ateando fogo na mata para produzir carvão.

. . .

Uma outra explicação: Sim, muito mais de 2000 km de estradas já foram desminados, principalmente nas províncias diamantíferas do norte do país. As vítimas das bombas, com suas bicicletas adaptadas para cadeiras de rodas, os membros amputados e carcomidos pelos mosquitos e os olhos deturpados pelo tracoma ou pelos estilhaços de mina antipessoal estão lá dentro do prédio do MINARS – Ministério da Assistência e Reinserção Nacional – tecendo cestos de pães, porta-jornais e leques com o capim recolhido nas estradas (des)minadas. (Não, meu senhor, eu procuro máscaras tchowké, obrigado.) Os “deficientes vão votar sem constrangimentos”. As histórias são muito outras ainda, como a do hospital em Muconda que . . . (continua)

terça-feira, 24 de junho de 2008

Kimbita

Kimbita hoje não foi à escola porque está doente.
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Cólera são águas salobras que escorrem pelas ruas sem asfalto e empoeiradas e pelas caídas da enxurrada, por todas as ruas da Baixa e em toda a extensão da Capital. São águas que acompanham o homem desde os tempos primordiais e ainda caminharão juntos por muito tempo e uma vez ou outra surge um John Snow mostrando que medidas simples como o saneamento básico são tão efetivas na prevenção da doença quanto o simples ato de lavar as mãos e os alimentos.
Cólera é doença diarréica aguda causada pela enterotoxina do Vibrio cholerae e que pode levar a quadros de desidratação grave, com choque hipovolêmico e óbito, principalmente nos menores de um ano. Aliás, lembrem-se: de cada quatro nascidos vivos, um morrerá de diarréia antes de completar o seu primeiro ano de vida.

Colerá são ainda diarréias de águas de arroz, súbitas, abundantes, vômitos, a pele sem turgor, os cabelos quebradiços e a barriga volumosa mas aí estamos sobrepondo os diagnósticos, na medicina nem nunca nem sempre já ensinava um grande mestre.

E cólera nada mais são do que três tendas de isolamento nos fundos de um hospital, primeiramente na capital e depois no interior e os outros relatos confirmam ser assim no país todo: são tendas de lona azul com teto de zinco e amarras de cordas esgarçadas (construídas pelo hospital) ou então outras que sobraram da ajuda humanitária, de lona marrom e armação de ferro. Tudo lembra um campo de refugiados/retornados, basta lembrar das imagens do noticiário internacional, o ano não importa, até porque as notícias são repetitivas, o que muda são as granulações da imagem e a rapidez da transmissão. (a doença será a mesma). Visita:

# Tenda número um: o paciente chega, é pesado e examinado. O enfermeiro suspeita de cólera pelas características clínicas da diarréia e academicamente faz-se o vínculo epidemiológico com casos semelhantes e a temporada de chuvas (novembro a março): deste modo a tenda está vazia nesta época do cacimbo.


# Tenda número três: repetição – com aumento da densidade demográfica, nem tanto de espoliação hidroeletrolítica – da tenda número dois.

Dentro de cada tenda existem cerca de cinco ou seis macas, também de lona marrom manchadas de branco – hipoclorito de sódio. No centro da maca há um buraco com um balde plástico azul embaixo, onde recolhem-se as fezes.
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Kimbita é a personagem de um material educativo fornecido pela UNICEF. Kimbita pode ter sido uma das outras três crianças que deitaram-se nas tendas e sobreviveram às chuvas que limpam os musseques e os kimbos.