segunda-feira, 31 de março de 2008

O preço da água. Água de beber. (US$1 = 75 kwanzas = 30 litros de água)

Água é essencial para o convívio, o bem-estar e a saúde de qualquer população. Aqui em Luanda – e creio que em toda a África – vive-se o racionamento de água diariamente: as cotas mínimas nos condomínios, os caminhões pipas (cisternas) ajudando a enlamear as ruas sem asfalto e esburacadas, os reservatórios de água externos às casas, os rapazes vendendo água nas ruas e ainda os banhos de caneca, a louça suja durante todo o final de semana, o feriado prolongado sem água, o racionamento (“senhores moradores, a partir de hoje o tanque do prédio será desligado de 5:30h às 8:30h, de 15:30h às 18:30h e de 21h às zero horas, pedimos vossa colaboração para a economia de água, certos de vossa compreensão etc etc etc”), o bidão, a jarra elétrica, a banheira cheia d´água, a lixívia (água sanitária, a roupa manchada!), os apartamento sem ralo, água pelas escadas, mais falta de água, cólera, hepatite “A”, outras doenças de veiculação hídrica, as tendas de isolamento no fundo dos hospitais, as crianças brincando na água de chuva, enchentes no sul do país, o rio Zambeze e o rio Kwanza, Moçambique, outra crise humanitária, “a Igreja Universal pede ajuda para as vítimas do Cunene”, o cacimbo (tempo seco) começa depois de maio, o deserto do Namibe está forrado por uma vegetação rasteira. São poucos os locais aqui onde existe água encanada, como os condomínios de Luanda Sul. Tratamento e canalização de esgoto são realidades distantes de boa parte dos bairros e nas províncias a história não é muito diferente.
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“Os rapazes vendendo água”

Os bidões são galões plásticos amarelos em que geralmente armazena-se óleo de cozinha, com capacidade para dez litros. Cada bidão vazio custa 250 ka (US$3,3). Os rapazes vão até uma localidade onde a água é vendida – uma mangueira, um poço artesiano, una cisterna, pode ser a água armazenada das chuvas mesmo. E desembolsa por cada bidão cheio 20 Ka (US$ 0,26). Ou seja, um litro de água custa 2 ka (US$0,03). Coloca os bidões no carrinho de mão (por carregamento consegue transportar sessenta litros) e os vende por 50 ka (US$ 0,66) cada. Isto quer dizer que para pagar só os bidões vazios são cinco viagens. E isto são ainda sete horas da manhã.

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O interessante é que enquanto escrevia este post para o blogue foi publicado no Jornal de Angola, no caderno de Economia & Finanças, uma matéria (“Venda de água: um negócio rentável”) sobre o comércio de água (“Sobrevivência acima de tudo”). Confirmou o que vinha garimpando com o motorista há dias e acrescentou outras informações. Como a do proprietário de uma cisterna, com capacidade para 30 mil litros, e cujo carregamento é comprado por 3990 ka (US$ 53,2) e revendido por 30 mil ka (US$ 400). Ou a da adolescente de 15 anos com uma bacia na cabeça cheia de saquinhos de água, comprados por 100 ka (US$1,3) no início da manhã e com lucro de 250 ka (US$3,3) no final da tarde. E a história de “um homem de muita sorte” que assinou um contrato com um complexo habitacional para fornecimento de 60 mil litros de água/dia, por 120 mil ka (US$ 1600).

Na rua o preço da gasolina em um garrafão de cinco litros custa 500 ka (US$ 6,7). E as filas para o combustível são tão sinuosas quanto as das senhoras à espera de água para consumo (?), cozinhar, lavar a roupa ou dar banho nas crianças nos musseques.









domingo, 23 de março de 2008

Mais sobre a medicina do viajante




Cabinda

Cabinda. A província-enclave situada no extremo norte de Angola, geograficamente separada de todo o território. Politicamente submetida às ordens do Camarada.
Cabinda. A provínicia-petrolífera, 30% do petróleo do país, 26% do PIB nacional, ELF, Shell, Cabinda Golf Oil Petroleun Company, o território do petróleo e do urânio e do ouro e do diamante e do fosfato e do manganês e do ferro. A da tabela periódica. Extrativismo de madeiras de lei.
Cabinda. A região do faroeste caboclo. FLEC, Frente de Libertação do Enclave de Cabinda.
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“Nzita Tiago lamenta português ferido em Cabinda” ou “Português gravemente ferido numa emboscada em Cabinda”. “Os estrangeiros devem partir do território” e “Cubanos estão de regresso a Cabinda”. “Morte de Helano desacredita teses angolanas de «Paz em Cabinda»”. “Resistência Cabinda reivindica a morte de onze soldados angolanos”. “FLEC reivindica a morte de vinte militares angolanos”. “Guerrilha ataca empresa de prospecção petrolífera”. “FLEC ameaça empresas em Cabinda”.

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Cabinda. Miconje, Belize, Buco Zau, Chicamba, Dinge, Lândana, Cacongo, Malembe, Tando Zinze, Ponta Vermelha, Iema, Cabinda. Fronteira com Congo-Brazzaville e Congo Democrático.
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A história de um médico. Em meados da década de 1980 decidiu que iria ser médico. Saiu no meio da guerra. O governo financiou os estudos. Aprendeu em russo que as coronárias irrigam o coração ao final de cada diástole, infarto é a necrose tecidual, resultado da hipoperfusão: infarto miocárdico, infarto esplênico, infarto cerebral, infarto pulmonar, enfarte. O nervo vago pode não se responsabilizar por todas as disautonomias, inclusive quando sente-se falta de alguém, ainda mais numa longínqua e calorosa cidade do Uzbesquistão. Vivia sem os seus pares, no primeiro ano morava com mais cinco de diferentes nacionalidades, seria mais fácil aprender o russo, pré-requisito para continuar os seis anos seguintes. Então não conseguia pedir um ovo, precisava apelar para a mímica. E como não era bom mímico (ou eles não eram bons entendedores?) passava fome. Voltou pela primeira vez para casa depois de dois anos, foram tempos difíceis. Voltou para casa no final de dez anos, com o russo fluente e a habilidade para conduzir uma cesárea. Sem guerra, com promessas de eleições, sem FNLA, o faroeste sempre vivo e tenaz, mesmas fronteiras, Cabinda ainda é o eco distorcido que o restante do país prefere ignorar e ao mesmo tempo trazer junto de si, extraindo todo o petróleo e ancorando mais um cargueiro que descarrega toda uma tripulação de chineses prontos a abrir estradas.
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“Cabinda: «Isto é um inferno para os angolanos»”

quinta-feira, 20 de março de 2008

A medicina do viajante

Existem os médicos, os enfermeiros, os charlatões, os curandeiros, as avós e as mães, as mães pretas, os médicos expatriado, os padres, os incrédulos, os miasmáticos, não necessariamente nesta ordem.

E o que segue foi o que o motorista comentou hoje cedo à caminho do trabalho. Quando ele era pequeno ficou com olhos amarelos, o xixi escuro, o cocô branco parecendo de gato, uma coceira no corpo e cansaço, muito cansaço. Os seus irmão tiveram os mesmos sintomas na época. Não havia (ou não há até hoje?) saneamento básico. Eu entendi que ele ficou ictérico, apresentou colúria, acolia fecal, prurido no corpo e pelo vínculo epidemiológico pensei na hipótese de hepatite viral, provavelmente pelo vírus “A”. Não há tratamento específico para esta hepatite.

O paciente em questão desta crônica de viagem disse que curou-se com tomadas duas vezes ao dia, durante uma semana, de um punhado de carvão amassado com a parte amarela do ovo de galinha, além dos banhos com ervas. Minha avó mandava um quilo de suspiro por semana para minha casa. Eu recomendo repouso, hidratação. Se curou? O motorista acredita que sim. Eu tenho saudades da minha avó e de suspiros. E continuam a existir as mães pretas.


sábado, 15 de março de 2008

Gin tônica: como destilar vietnamitas (A Baía de Luanda)

(Há alguns posts comentei sobre as várias Luandas dentro de uma só. Eis outra casca, a Ilha. A dos bares, a dos expatriados, a da disco music, a do gin tônica, a da Baía.)

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Um pouco de gim, uma rodela de limão, tónica e gelo a gosto. Vamos começar os autos.

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Escrevo primeiro sobre certas vietnamintas de Ho Chi Minh de tempos pós colonialistas, fugidas de alguma toca sórdida de Luanda Baixa e que vestem-se sem qualquer critério, seguram seus cigarros em mãos trêmulas e amavelmente sorriem àqueles que cruzam o seu vago olhar.

Escrevo ainda sobre certas angolanas que saem na surdina de seus musseques, sumariamente vestidas e com o rosto todo borrado de pó e ruge (nem de longe lembram bonecas de porcelana chinesa de outros tempos colonialista) e que carregam ao tiracolo seus brancos velhacos e desacreditados.

Escrevo por fim (ainda não) sobre expatriados de um país distante do outro lado e de cá e que conheceram-se há alguns meses, por intermédio de um aliciador comum (que intenso, não?) e que desejam muito falar de si, de ouvir novas histórias e sonhos, conversam sobre ceviches de peixes brancos e cervejas homónimas. E que lentamente vão cercando-se, eriçando suas penas de pavões em noites de núpcias e preparando-se para o bote. Casa, saudades, mãe, carinho, solidão, medo, angústia.

E então o lápis começa a devanear sofregamente sobre a folha de papel amarelada a ponto de querer machucá-la e decifrar no segredo das nódoas (“não, não, isso não é uma xícara de café, é mais uma outra dose de gin tónica”) uma resposta para uma pergunta simples e decisiva:

– Quantos estertores ainda serão precisos para constatar que ficaremos sentados a noite inteira neste sofá?

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(Existem os cargueiros a espera dos trâmites alfandegários na outra margem da Baía de Luanda abarrotados de gin tónica a apodrecer os ratos.)

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– Mais tônica, por favor!



quinta-feira, 13 de março de 2008

As negligenciadas – a história de um continente (parte 3)

(final)
Setembro de 2000. Organização das Nações Unidas. A Declaração do Milénio propôs oito metas desenvolvimentistas para o combate à fome, miséria extrema e doenças infecciosas, a serem cumpridas até o ano de 2015. A sexta meta é endereçada ao combate do HIV e aids, malária e outras doenças infecciosas. Vários organismos internacionais, muitos financiados pelo G8, suportam atividades de pesquisa com relação ao diagnóstico e tratamento destas doenças. E em termos e tempos de politicamente correto nada mais justo que renomear as “outras doenças”.
Doenças negligenciadas. África é o primórdio da origem das espécies, o continente negro e perdido, com todas as suas crenças, ritos, primitivismos, danças, cores, sons, dores, palco de outras veias abertas e que vão abrindo-se sempre e cada vez mais, dissecando nova tragédias, massacres, risos, lágrimas, enquanto isso em Darfur, e tem uns estrangeiros que andaram traficando pessoas no Chad, mas nem preciso ir muito longe, outros dias na província e haviam muitos refugiados/retornados sendo devorados pelo vírus, terra dos contrastes, o último modelo do veículo japonês ultrapassa a carroça puxada por um cavalinho seco, todas as antenas parabólicas sintonizam os sonhos e as ilusões do outro lado de lá (a vida não é laços de família e duas caras, muito menos escrava isaura e bbb, o rio de janeiro não é o espelho do Brasil, nem todo mundo é despertado por um rolex, 111 quer dizer algo?), o condomínio de luxo é invadido pelo musseque, é a loja da Hugo Boss que é sórdida e desbotada no meio da Rainha Ginga, acho que vou afastando-me e muito da varanda, enfim, são outras discussões.
África é o berço de boa parte das doenças negligenciadas, quase exclusivas dos países em desenvolvimento. Correspondem à sétima causa de anos de vida potencialmente perdidos, atrás das doenças cardíacas isquêmicas. São a úlcera de Buruli, as doenças diarréicas e cólera, a dengue, a dracunculíase, as treponematoses endêmicas (sífilis e pinta), a tripanossomíase africana (doença do sono), a leishmaniose, a lepra, perdão, a hanseníase, a filaríase linfática, a leptospirose, a oncocercose, a esquistossomose, a helmintíases e o tracoma. A doença de Chagas vai bem, obrigado e também é esquecida.
Estão nos compêndios tropicalistas e nos tratados de medicina interna, estáticas, peculiares, destrinchadas, classificadas, diagnosticadas com os métodos de ficção científicas e tratadas com o mais novo medicamento. Mas aqui o diagnóstico do HIV é baseado no teste rápido e ainda tenta-se transferir a prescrição dos anti-retrovirais aos não-médicos, a sífilis congénita fica por isso mesmo, a tuberculose nunca teve sua pompa romântica, os leprosos, perdão, os hansenianos continuam sem tratamento e com as mãos tornando-se garras, a atrofia é lenta e pouco dolorosa, os palúdicos sofrem as febres, as dores difusas, a esclera amarelando cada vez mais e as reservas de ferro sendo espoliadas com o auxílio de todos os ancilostomídeos (Dona Suzete, a mesma do gás que falhou está de repouso em casa porque teve nova recaída e ainda pagou 1000 kwanzas, aproximadamente 14 dólares, pela poliquimioterapia que era para ser gratuita). A cólera, a mesma das águas profusas e de arroz, enxuga 48 em mil nascidos vivos menores de um ano de idade. A poliomielite infantil tenta ser chutada para outros lados mas acaba mesmo tolhendo o direito das crianças de correr livremente pelos musseques. E perambula pela cidade uma geração de albinos do pós-guerra – bem, estes estão deslocados, porque são recessivos e não negligenciados (será?) – que deve ajudar com uns números para as estatísticas do câncer de pele.
Sim, tudo poderia ser diferente. Poderia haver diagnóstico sorológico do HIV e terapia anti-retroviral adequadamente prescrita, água para lavagem das mãos nos hospitais, tratamento para a sífilis e a hanseníase, melhor prescrição de antimalarianos, erradicação da poliomielite com ampla cobertura vacinal, saneamento básico, a guerra acabou, os tempos são de paz, a história de um continente é feita de muitas crianças barrigudas e de tantas outras bê-érre-êmes, afinal esta é a negligenciada tragédia africana.

terça-feira, 4 de março de 2008

Os negligenciados – vida e morte de uma criança (parte 2)

(continuação)

Olhem criteriosamente para estas crianças. Eu tenho visto muitas delas por estes tempos. Não são saudáveis. Acreditem. Tomemos uma delas por um breve momento de sua vida.

Ela tem os olhos fundos e desolados, os cabelos sem brilho e quebradiços, os membros finos e raquíticos (no seu sentido mais puro), o abdome é globoso, às custas de toda a fauna unicelular e achatada a qual ela terá direito na sua curta vida e toda a proteína que lhe será negada de direito. Não frequentará a escola, afinal aqui mais de 33% são analfabetos, sem contar os funcionais. Se for à escola terá seríssimos problemas de aprendizagem, dificuldades para somar e subtrair e para fazer-se entender. (Nenhuma sinapse sobrevive à falta de gordura).

Ela foi colocada de lado pela mãe quando seu irmão mais novo nasceu. Foi desmamada precocemente. Não ingeriu todos os nutrientes que precisava. Em Gana seria o protótipo perfeito, porque lá, a sina de ser deixada de lado, em língua local, chama-se kwashiorkor.

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(E então este tópico do quarto ano da Faculdade de Medicina fica desta maneira, sendo revisto mais intensamente nestes lados que quando foi-me apresentado há sete anos, nas páginas do Tratado de Pediatria, na periferia de São Paulo e nas zonas ribeirinhas de Santarém, no Pará, com nome, desnutrição, sobrenome, proteico calórica, e sinonímia, kwashiorkor.)

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Não foi à escola. Não cresceu. Não comeu adequadamente. Andou por aí, à toa e somente por aí, brincando e comendo terra, brincando e esvaindo-se em águas profusas e de arroz, brincando e morrendo de tétano. Foi deixada de lado pela mãe (a releitura de uma tragédia grega com outra cor local?). E morreu, assim como outras 260 a cada mil que nascem por aqui – e o que são estatísticas para o burocrata que pensa que o seu carimbo vai alterar a rotação do mundo? (são números, oras!). Podia ter sido filho de B.R.M, 43 anos, negra, angolana, semi-analfabeta, soropositiva e negligenciada.