terça-feira, 24 de junho de 2008

Kimbita

Kimbita hoje não foi à escola porque está doente.
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Cólera são águas salobras que escorrem pelas ruas sem asfalto e empoeiradas e pelas caídas da enxurrada, por todas as ruas da Baixa e em toda a extensão da Capital. São águas que acompanham o homem desde os tempos primordiais e ainda caminharão juntos por muito tempo e uma vez ou outra surge um John Snow mostrando que medidas simples como o saneamento básico são tão efetivas na prevenção da doença quanto o simples ato de lavar as mãos e os alimentos.
Cólera é doença diarréica aguda causada pela enterotoxina do Vibrio cholerae e que pode levar a quadros de desidratação grave, com choque hipovolêmico e óbito, principalmente nos menores de um ano. Aliás, lembrem-se: de cada quatro nascidos vivos, um morrerá de diarréia antes de completar o seu primeiro ano de vida.

Colerá são ainda diarréias de águas de arroz, súbitas, abundantes, vômitos, a pele sem turgor, os cabelos quebradiços e a barriga volumosa mas aí estamos sobrepondo os diagnósticos, na medicina nem nunca nem sempre já ensinava um grande mestre.

E cólera nada mais são do que três tendas de isolamento nos fundos de um hospital, primeiramente na capital e depois no interior e os outros relatos confirmam ser assim no país todo: são tendas de lona azul com teto de zinco e amarras de cordas esgarçadas (construídas pelo hospital) ou então outras que sobraram da ajuda humanitária, de lona marrom e armação de ferro. Tudo lembra um campo de refugiados/retornados, basta lembrar das imagens do noticiário internacional, o ano não importa, até porque as notícias são repetitivas, o que muda são as granulações da imagem e a rapidez da transmissão. (a doença será a mesma). Visita:

# Tenda número um: o paciente chega, é pesado e examinado. O enfermeiro suspeita de cólera pelas características clínicas da diarréia e academicamente faz-se o vínculo epidemiológico com casos semelhantes e a temporada de chuvas (novembro a março): deste modo a tenda está vazia nesta época do cacimbo.


# Tenda número três: repetição – com aumento da densidade demográfica, nem tanto de espoliação hidroeletrolítica – da tenda número dois.

Dentro de cada tenda existem cerca de cinco ou seis macas, também de lona marrom manchadas de branco – hipoclorito de sódio. No centro da maca há um buraco com um balde plástico azul embaixo, onde recolhem-se as fezes.
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Kimbita é a personagem de um material educativo fornecido pela UNICEF. Kimbita pode ter sido uma das outras três crianças que deitaram-se nas tendas e sobreviveram às chuvas que limpam os musseques e os kimbos.


quarta-feira, 4 de junho de 2008

Retornar, sempre

“(...) As tias avançavam aos arrancos como dançarinas de caixinhas de música nos derradeiros impulsos da corda, apontavam-me às costelas a ameaça pouco segura das bengalas, observavam-me com desprezo os enchumaços do casaco e proclamavam azedamente:

– Estás magro

como se as minhas clavículas salientes fossem mais vergonhosamente que um rastro de batôn no colarinho. (...)”
(António Lobo Antunes, Os Cus de Judas)