domingo, 10 de agosto de 2008

A memória da guerra (O sol depois das onze horas)

“Esquecer eu não consigo
O massacre de Kifangondo
Ali morreram camaradas
Ali morreram angolanos (...)”

(Massacre de Kifangondo, David Zé)

Perguntar sobre as histórias de guerra em Dembos de Quibaxe, município da província do Bengo, aos seus moradores assustados, arredios e muitas vezes contemplativos, como sempre nestas terras de cá, é fazer com que relembrem de tempos azedos. Parece que essas épocas foram sonhos interrompidos, como os sonhos dos que acordam vagarosamente com o lamento triste das cabras cegas sob a neblina pesada das cinco horas da manhã. Parece que foram famílias estilhaçadas em abraços e abraçadas pelas armas dos camarada.

Vagarosamente também é a cristalização destas memórias, materializadas conforme a serração pesada da floresta tropical cede espaço ao sol monocromático das onze horas da manhã. A estrada de terra principal, que um dia foi asfaltada e onde as senhoras brincavam com seus filhos,

Aquele imóvel um dia foi um snooker bar, o ponto de encontro onde os senhores discutiam os rumos da política lambendo-se uns aos outros entre copos de Cuca e descascando o amendoim a partir das onze horas da manhã e que hoje não passa de um barracão escorado por vigas de madeira e o telhado descontínuo que o mesmo sol memorial ilumina e esclarece que o jogo no tabuleiro precisa ser terminado. (E neste momento a senhora que passa deve estar perguntando se a cisterna já foi abastecida para poder cozinhar os alimentos, lembrem-se da Kimbita),

A administração municipal, o que restou do prédio imponente e de estilo colonial, no ponto mais alto da cidade e estrategicamente empilhada no final da rua? Hoje não passa de uma casa mal assombrada onde o capim cresce por entre as telhas de barro musguentas, o pouco das vidraças apedrejadas que sobreviveram às mãos marotas dos irmãos deixando a fachada ainda mais decrépita,

O paiol de armas, o seu esqueleto enferrujado, todo reumático, a tentar manter-se de pé entre os figurões da luta armada hoje em pé de guerra com o grito de desespero das vozes dissonantes (“se nós estamos a insistir na paz, porque é uma aspiração genuína e profunda de nosso povo”),

Enfim, tudo o pouco e sem palavras que pôde ser visto neste memorial fúnebre das onze horas da manhã.