terça-feira, 6 de janeiro de 2009
Prêmio Dardos
domingo, 21 de dezembro de 2008
A Retirada
não me recusei a dar prazer algum ao meu coração. (Ecl 2,10)
Este é o fim. A metáfora simples e sem elaboração do círculo fechando-se novamente, ano após ano, quando inicia-se a retirada, a revoada, o delírio migratório, o desalojar-se ou sei-lá-mais-o-quê, arranjar tudo nas malas, os presentes, as recordações de tempos que já foram e que ficarão guardados no baú das memórias que é o que chamamos de saudades e aperto no coração, os livros não lidos, jogar fora as anotações, as tralhas, os cupons fiscais, os mapas, abrir a sua agenda e encontrar uma foto em tons de sépia de uma aborígene que de repente entrou em sua vida, não bastasse a anamnese ser dirigida e eu vou escarafunchando sobre os costumes locais: segue-se toda uma história de perímetro de chineses e asfaltagens e órbitas, o senhor curou-me e devo-lhe a minha vida e por acaso a sua doença tem cura (não neste tom e com estas palavras) e eu por acaso sou onipresente minha senhora? virou minha paciente e eu que queria tê-las todas ao meu lado para o retrato da posteridade e vejo-me agora com ela e sua filha recém-nascida, ão há ninguém para ser testemunha ocular desta cena, somente eu e meus sonhos, a criança envolta em panos a boca procurando o alimento proibido pode pegá-la doutor, gostou do senhor, mas não tenho jeito com crianças, mas falávamos sobre retiradas, não é isso? sobre
voltar para casa,
mãe
ter pátria novamente
pai
volte
andar pelo centro descompromissadamente, pedir na padaria da esquina um sanduíche de pão com queijo branco e café com leite, rever os amigos, porque aí haverá um final de tarde na sacada de um prédio milimetricamente quadriculado, sob um sol que nunca apareceu mas sabemos que já se pôs e é nessa palheta de sombras que tudo será revelando quadro a quadro, sempre e cada vez mais e sentindo a acidez de uma discussão sobre Bergman e o sofrimento e a náusea que um Chet Baker pode causar – já imaginou umas velas iluminando e derretendo vagarosamente esta cena? E então é assim que entramos rapidamente na noite escura, quando retiro-me, arrumo as malas, empacoto os seus discos e os meus livros, apago do computador as memórias borradas e persecutórias de uma África que sempre tinha visto em fotos, algumas imagens valem mais que mil palavras, mas nem um dicionário com todos os sinônimos do mundo, em todas as línguas possíveis e inventadas seria capaz de expressar o que vi, senti, o que vivi e o que deixei de fazer, os sonhos, as frustrações, as angústias, os desejos e as partidas, o estar sozinho, a ausência de um retorno às chamadas telefônicas, meu escapismos dos dias turbulentos, minha sombra catártica das três da tarde, minha vontade de vomitar tudo e dizer gostei de você assim, a lágrima de quem menos espera-se, imaginar a sua vida uma biblioteca sem fim em que todos os livros são réplicas cortazianas do jogo infantil das pedrinhas (rayuella lembra arruela, a peça chave que segura a volta do parafuso, de maneira que tudo permaneça fixo, estável) e cada livro será um dia na sua vida frouxa na minha vida escapada na vida de todos nós e apenas o direito a uma situação, um ponto de partida, uma vivência, uma decisão, sim e não, direita ou esquerda, para cima ou para baixo e todas as situações decorrentes partirão deste marco zero, deste capítulo um, era um dia de sol e ele levantou-se, a partir de então começo, meio e fim, fim do dia, chega-se ao final e ele fechou os olhos e dormiu sonhos sonhados, para no dia seguinte retirar outro livro, o mesmo capítulo um, a sua escolha já foi feita, continuará a ser um dia de sol, mas a história seguirá pelo miolo, rumará para o final e voltará para o início, trata-se de uma outra leitura, não sei se prazerosa ou não, a mesma história os mesmos personagens, um novo caminho, que porra é o livre arbítrio, ter que escolher e afrontar (um tapa) e enfrentar (um soco bem no meio do estômago) as consequências (meu mundo cartesiano), brincar de cabra cega em terra de cegos, no terceiro dia ainda fará sol e no quarto dia haverá o mesmo capítulo solar. E todos os fins de tarde daqui para frente serão aquelas sinfonias de cigarras descompassadas presas as acácias em frente ao jardim de casa, depois a chuva e o cheiro de terra molhada.
x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-FIM DO BLOG-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
Três temas candentes
Vejamos, recapitulação de uma outra negligenciada. No início a histeria coletiva do repelente, com a sua nuvem densa, asfixiante e pegajosa de permetrina, capaz muito mais de afastar quem está ao seu lado que o próprio anofelino, a chegada neste lado de cá, uma manhã bem quente já às cinco e trinta, a nuvem de mosquitos no aeroporto, a confusão toda à la Sir Livingstone logo na imigração, malas, passaportes, vistos, cartão de febre amarela, podemos ter todas as doenças menos esta, faça-me o favor doutor, endereços, saudades, solidão, ainda faltam 364 dias, então isto é a África? mas assim de repente? então tchau, depois “ser picado”, doutrina corporativista médica apanágio de todos os sintomas (im)possíveis e (in)imagináveis, paludismo para tudo e para todos com diarréia, tosse, unha encravada, mau olhado, saudades de casa e esquisitices outras, malária é para os casos graves, no final o anel continua sendo o mesmo, o fato é que brilha mais e intensamente em outras direções, querendo dizer que os órgão acometidos já serão outros. E se não for apenas uma questão de ótica o que é ouro de tolo – entenda-se artefato do exame – ganha cumprimentos de uma alquimia e transforma-se em mais anéis e daí começa-se a entender o porquê da resistência do plasmodium aos antimalarianos, será que porque os prescrevemos e-x-a-g-e-r-a-d-a-m-e-n-t-e ou porque só queremos e conhecemos este diagnóstico? Assim foram os primeiros trinta dias, as noites tchowkes, a ordem natural das coisas, com as suas espirais de permetrina queimando calmamente no quarto de hotel e lançando o seu fumo fétido e que impregnava toda a roupa e mala e idéias. Assim vieram os cem dias, muita saudades, a novidade dos mosquiteiros no meio do oásis sub-sahariano, as enfermarias miasmáticas com seus doentes quinínicos, o pavio da vela etc etc etc, aquela questão da Rosa Náutica ficou para trás, tenha (tinha, terei, tive) a certeza disso (ou não). Assim vieram mais trinta dias, as mumuílas autênticas peregrinando entre as paredes de mosquiteiros, uma pilha de “modos de montar” flanando na poeira do Lubango, os mosquiteiros doados pelos organismos internacionais, as prateleiras de coartem de todas as cores e sabores no memorial fúnebre das onze horas e passando pelo assassinato no hospital sem manual de instruções no Sumbe (estes chineses), revivendo os fumos saudosos transoceânicos depois de ter sido carregado às pressas para o quarto de hotel por uma nuvem de anofelinos, aqueles apontamentos malucos permeados de entrelinhas, de conversinhas paralelas e cifradas, aquele congresso internacional de restolhos do bloco socialista, o fumacê no condomínio, porque
- Então vamos prescrever artesunato endovenoso porq
- Não tem, não há, aqui não é assim
terça-feira, 18 de novembro de 2008
Três temas candentes
domingo, 16 de novembro de 2008
Três temas candentes
sábado, 4 de outubro de 2008
Quatro ou cinco apontamentos sobre Sumbe, capital política do Kwanza Sul
e nem mesmo das personagens babilônicas desta representação torpe e sem sentido que vem a ser estardesteladodecá, senhoras e senhores, ladies e gentlemen, as principais novidades deste circo dos horrores: o caubói russo à la harleydavidson e sua trupe de doutoras hermanitas e cubanas (“mucho gusto, yo soy lo remordimiento triste de Silvio Rodriguez, el cantante cubano que . . . bien, yo te estraño, cariño”), o casal trans-siberiano interrogativo e tão orientados quanto um avião de papel que aprende-se a dobrar logo nos primeiros anos de vida, o maratonista oriental com sua maleta 007, a última tecnologia em armazenamento de dados e um carro sem gasolina, suba aí, vamos para o mesmo lugar, a senhora vietnamita com seus chás cardiotônicos para indicações psíquicas e outros chistes (aplausos) e além, é claro, de uma amostra dos de sempre: os pescadores, as zungueiras, as crianças, os cachorros vadios, as galinhas, o peixe seco, o homem desconfiado, quilos de banana, quilômetros de estrada, imbondeiros, abacaxis, a polícia, chineses, brasileiros, expatriados de maneira geral, batatas da terra, carvão, a televisão estatal, bilhetes cancelados, lagostins, poeira, desminagem, mais crianças, escombros, carvão, arquitetura colonial, etc etc etc inúmeras vezes, misture uma porção de cada e deixe cozendo em fogo brando por trinta longos sóis e terá-se o leitmotif desta música triste que é estar neste lado de cá. (talvez nem fosse sobre Sumbe que precisasse falar, mas apenas exorcizar as águas profundas destas baías turbulentas).- Veja só, você foi aquela felicidade clandestina dos famintos que mordem o naco de pão depois de terem percorrido o longo deserto, a sensação quente de qualquer aperto ou carícia depois da longa ausência, mas tudo isso dura pouco, porque a clandestinidade só é sustentada por certos períodos e promessas de amores sem fim, caminhos cruzados e todo o blá blá blá sentimentalóide que você quer que eu engula como se fosse uma iguaria nababesca e amanhã ou depois diremos adeus e adeuses, é melhor dizer adeus quando estamos de partida para evitarmos não-ditos mais para a frente e à frente está a enigmática Igreja geométrica que já ficou para trás, vigiando toda a costa, diametralmente oposta (quantas idéias baratas) ao Farol metralhado e que não orienta mais nada, (e olhe só que o casal comunicou-se muito pouco)
quinta-feira, 4 de setembro de 2008
O perímetro das mumuílas
As histórias são muitas outras ainda, como a do hospital em Chibia, na Huíla, cuja ruas estão sendo asfaltadas pelos chineses e delimitando todo o perímetro no qual as mumuílas circularão pelas próximas semanas, cercando-as e deixando-as incomunicáveis, afinal,
– O cacimbo não foi tudo isso? O tempo do isolamento, dos três meses de seca, de agonia, de aperto, do céu nublado até as quatro da tarde, do sol das 16:59 que esconde-se novamente às 17:20, o tempo seco e cinzento das manhãs de junho e dos fins de tarde de agosto, o da incomunicabilidade, o dos silêncios velados? O tempo das partidas constantes, dos adeuses não ditos e esquecidos, as lágrimas que nunca saem mas estão lá na iminência da tempestade, o tempo da longa espera da tartaruga de patas para cima . . .
A cartografia do desejo
Este município é delimitado – e se depender dos chineses por pouco tempo – por quatro ruas. Na primeira rua, para quem chega pela estrada de terra esburacada e empoeirada, temos algumas casas antigas emboloradas por fora, com resquícios de pinturas em tons pastéis, algum comércio que vende tudo acima do câmbio oficial, a agência bancária e a casa de um senhor que faz ligações de longa distância.
As órbitas
Isto seria tudo. A semana teria acontecido dentro das conformidades, sem maiores imprevistos, tudo ao seu tempo, lógica, não fosse a asfaltagem de todo o perímetro onde está localizado o Hospital Municipal da Chibia. O alvoroço foi descomunal. As crianças não sabiam se corriam atrás do caminhão de piche, se carregavam um pouco do magma betuminoso para dentro de casa e o adorassem como relíquia arqueológica ou se continuavam a empurrar os seus carrinhos de rodas de latas de tomate e eixos de cabides desmontados em meio às máquinas e sirenes dos tratores. As mulheres mumuílas permaneciam interrogativas à toda situação sem saber o porquê e o para quê de toda aquela confusão, embora uma delas – motivo de meus devaneios antropológicos (ou seria delírio persecutório?) – tenha deixado de lado no dia seguinte a sua atitude contemplativa perante o caos dos chineses e tivesse colocado a mão na enxada e ajudado a cavar um fosso para a tubulação do esgoto para o saneamento do dejetos do hospital, cavado em boa parte na base da enxada e do olhar fixo, vago, sedento e esfomeado dos seus três filhos.
As leis da física
No final da semana a asfaltagem de Chibia ainda não havia sido concluída. Soube-se que dentro de uns poucos dias chegariam o governador provincial e o ministro de uma pasta aí para inaugurarem a barragem municipal, também impedida de ser fotografada. Sobraram os chineses, alheios a tudo e metidos nos seus próprios eixos de rotação, desconhecendo desviar a órbita das mumuílas e permitindo-se a todo o desejo possível, inclusive o de ser fotografado.
domingo, 10 de agosto de 2008
A memória da guerra (O sol depois das onze horas)
“Esquecer eu não consigo
O massacre de Kifangondo
Ali morreram camaradas
Ali morreram angolanos (...)”
(Massacre de Kifangondo, David Zé)
Vagarosamente também é a cristalização destas memórias, materializadas conforme a serração pesada da floresta tropical cede espaço ao sol monocromático das onze horas da manhã. A estrada de terra principal, que um dia foi asfaltada e onde as senhoras brincavam com seus filhos,
Aquele imóvel um dia foi um snooker bar, o ponto de encontro onde os senhores discutiam os rumos da política lambendo-se uns aos outros entre copos de Cuca e descascando o amendoim a partir das onze horas da manhã e que hoje não passa de um barracão escorado por vigas de madeira e o telhado descontínuo que o mesmo sol memorial ilumina e esclarece que o jogo no tabuleiro precisa ser terminado. (E neste momento a senhora que passa deve estar perguntando se a cisterna já foi abastecida para poder cozinhar os alimentos, lembrem-se da Kimbita),
A administração municipal, o que restou do prédio imponente e de estilo colonial, no ponto mais alto da cidade e estrategicamente empilhada no final da rua? Hoje não passa de uma casa mal assombrada onde o capim cresce por entre as telhas de barro musguentas, o pouco das vidraças apedrejadas que sobreviveram às mãos marotas dos irmãos deixando a fachada ainda mais decrépita,
O paiol de armas, o seu esqueleto enferrujado, todo reumático, a tentar manter-se de pé entre os figurões da luta armada hoje em pé de guerra com o grito de desespero das vozes dissonantes (“se nós estamos a insistir na paz, porque é uma aspiração genuína e profunda de nosso povo”),
sábado, 12 de julho de 2008
Desminagem, a estaca de duas cores
“Paihama pede solidariedade para com as vítimas das minas”
“Desminagem incidirá sobre áreas mineiras agrícolas”
“Chineses intensificam trabalhos de desminagem”
“Governo pretende consolidar acções de desminagem nas áreas mineiras”
terça-feira, 24 de junho de 2008
Kimbita
Cólera são águas salobras que escorrem pelas ruas sem asfalto e empoeiradas e pelas caídas da enxurrada, por todas as ruas da Baixa e em toda a extensão da Capital. São águas que acompanham o homem desde os tempos primordiais e ainda caminharão juntos por muito tempo e uma vez ou outra surge um John Snow mostrando que medidas simples como o saneamento básico são tão efetivas na prevenção da doença quanto o simples ato de lavar as mãos e os alimentos.