segunda-feira, 12 de maio de 2008

Rainha / Zungueira / Ginga

Rainha Ginga. Rainha preta. Senhora das guerras e das demandas. Mulher, angolana, guerreira. Nzinga Mbandi Ngola. Filha de Ngola Kiluanji, rei de São Paulo de Assumpção de Loanda no tempo da colônia e do tribalismo, no tempo de lágrimas.

Zungueira é a negociante do mercado das ruas informais que percorrem toda a Luanda. Seja o pão por 25 kwanzas ou o tomate por 100 kwanzas a dúzia, elas são filhas de pais e mães sem nomes, guerreiros como elas e como muitas outras ao longo de muitos sóis.

A Rainha Ginga foi Rainha de Matamba e Angola nos séculos XVI e XVII (1578 a1663). Considerada uma das primeiras líderes nacionalistas, lutou ferozmente contra a Metrópole. Símbolo da resistência angolana ao colonialismo português. Conterrânea de Zumbi dos Palmares, senhor das guerras e senhor das demandas.

As irmãs desta zungueira também são inominadas(véis?) mas podem atender pelo nome de Ana, Maria, Sila, Elsa, Glória, Bárbara, Engrácia, Rosa, Filomena, amém, seja feita a vontade de quem puder mais. São tantas as tranças destas guerreiras, são todas as cores estampadas nos panos, é quase nada o que recebem debaixo de tantos sóis.

Para reaver o seu território em poder dos portugueses precisou negociar a sua fé, sendo batizada então como Dona Anna de Sousa e suas irmãs Cambi e Fungi como Dona Bárbara e Dona Engrácia. Antes da capitulação refugiou-se numa ilha do rio Kwanza, mas a história que segue é que morreu de causas naturais segundo informações colhidas.

A zungueira vai de lá para cá com a bacia na cabeça e a criança no dorso oferecendo os seus produtos e é chegada a hora de revelar que a ladainha interminável e por vezes onírica que envolve o viajante todas as manhãs na Rainha Ginga nada mais é do que o pregão de uma distinta senhora que oferece a dúzia de carapinhas [peixe de água salgada servido grelhado] por 1000 kwanzas ao longo de toda a rua. O seu território é a Maianga, o Prenda, a Mutamba, a Baixa, o Mártires, os Palancas o comércio informal é combatido a chutes e pontapés (uma lágrima) pelos babas sórdidos do Kinaxixi e próximos à rotunda do Zé Pirão.

A senhora imortalizada na estátua de bronze, um dia Angola foi o reino Kongo, Cassange, Planalto Central, Huíla-Humbe, Matamba e Ndongo, a senhora vestal impõe-se soberbamente e empoeirada e de uma só vez no meio dos prédios incrédulos e sórdidos do Kinaxixi e próximos à rotunda do Zé Pirão.




sexta-feira, 2 de maio de 2008

Cem dias deste lado de cá

I

Cem dias deste lado de cá. Medo. África. Vacinas. Visto e ser visto. Passaporte. Saídas. Chegada. Choro do pai. Choro da mãe. Choro do irmão. Choro dos amigos. Angola. E se eu tivesse dito que não viria para cá, seria como, hein?, responda! (Despedidas). Reencontros. Saudades. Luanda. Chegadas. O vento na catana na bandeira na roldana no vento. Muito anofelino. Trânsito. Rocha Pinto. Avenida 21 de Janeiro. Musseques. Musseques. Esgoto. Chuva. Casa nova, gente nova, idéias velhas. Falta água. Falta energia elétrica. O gás falhou, Dona Suzete teve recaída do paludismo. Baratas. Trabalho. Rainha Ginga (mulher, guerreira, africana). Sensações anódinas. Maianga. Expatriados. Prédio cinzento, imemorial, línguas nacionais, kimbundo, umbundo, kikongo. As crianças. Todas as tardes na Rinha Ginga todos são irmãos. Português castiço e ortografia embaralhada contato-arquitectura-contacto-arquitetura. Carnaval. Luanda Baixa: sórdido é um adjetivo que escorre pelas noites vaporosas. Praia estrada falésia estrada um corpo estrada imbondeiro estrada estrada estrada praia peixe pobreza (miséria?) pôr do sol, silhuetas ao sol. Sol muito sol, fins de tarde à cobrar. Mussulo. Sangano. Cabo Ledo. Fixe, bué, mo kamba, aiué. Kizomba, semba, cuduro. Palancas. Placas de ruas azulejadas. Arquite(c)tura colonial. A memória da guerra. Avenida Marginal. Hotel Presidente, um cartão postal de mil novecentos e ... Vietnamitas. Gin tônica, mais por favor! As vietnamitas não são tão asiáticas assim, veja bem, Tragédia africana partida numa só, a de sempre. Guerra uma vez.
Chyndele. Pula. Branco. Colonizador (de quem? por quê?). Refugiados e retornados. Província. Interior. Moxico. Luena. Bitoque. Savimbi. Túmulo. Noites tchowké. Nada funciona. As dançarinas mukandas. Livros, autógrafos, mais livros, menos escrita. Uma história de negligenciados. Aniversário. Uma parede milimetricamente calculada com um vestido azul acomodado cuidadosamente numa cadeira de balanço você viu como a tempestade ia passar?.
“La Rosa Náutica”, no caso de pensar em pedir a mão de alguém em casamento (o último romântico). As garças filtradas com lentes do pôr do sol em negativo (tendências monocromáticas). A senhora granulada capturada inesperadamente. Banzo pela primeira vez. Saudades negras, sentimentos de mortes. Saudades sempre de todos. Volte logo. Preciso[(amo)]s (de) você. Estar aqui e em nenhum lugar. (pausa).

II
São seis máscaras mortuárias expostas numa parede vermelha.
Uma noite, uma luz, uma vela, uma sensação. Como é possível uma vela iluminar com tanta riqueza todas as curvas e arestas e detalhes e adornos e cores e ranhuras e imperfeições e grumos de barro de seis máscaras mortuárias atônitas,o pavio da vela
vai
sumindo
lentamente
e
cansando-se
de permanecer
aceso
até que
não reste
mais sombra,
mais vela,
mais nada,
nenhuma sombra, sombrio, escuridão, breu, noite, trevas, vazio, ignorância, sombra cada vez mais, assombrado e assombroso, só sombra
e as máscaras continuarão repousadas na parede vermelha (não há luz, como saber se irão permanecer dependuradas nos mesmos lugares, isto é o fim? acenda outras velas então). A lua cheia dentro da noite escura dentro da varanda ocular dentro do quarto frio e cinzento dentro do coração apertado e choroso dentro

III
dos cem dias deste lado de cá. (a chuva fina que cai no outro lado de lá).