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segunda-feira, 31 de março de 2008
O preço da água. Água de beber. (US$1 = 75 kwanzas = 30 litros de água)
domingo, 23 de março de 2008
Cabinda
“Nzita Tiago lamenta português ferido em Cabinda” ou “Português gravemente ferido numa emboscada em Cabinda”. “Os estrangeiros devem partir do território” e “Cubanos estão de regresso a Cabinda”. “Morte de Helano desacredita teses angolanas de «Paz em Cabinda»”. “Resistência Cabinda reivindica a morte de onze soldados angolanos”. “FLEC reivindica a morte de vinte militares angolanos”. “Guerrilha ataca empresa de prospecção petrolífera”. “FLEC ameaça empresas em Cabinda”.
Cabinda. Miconje, Belize, Buco Zau, Chicamba, Dinge, Lândana, Cacongo, Malembe, Tando Zinze, Ponta Vermelha, Iema, Cabinda. Fronteira com Congo-Brazzaville e Congo Democrático.
quinta-feira, 20 de março de 2008
A medicina do viajante
E o que segue foi o que o motorista comentou hoje cedo à caminho do trabalho. Quando ele era pequeno ficou com olhos amarelos, o xixi escuro, o cocô branco parecendo de gato, uma coceira no corpo e cansaço, muito cansaço. Os seus irmão tiveram os mesmos sintomas na época. Não havia (ou não há até hoje?) saneamento básico. Eu entendi que ele ficou ictérico, apresentou colúria, acolia fecal, prurido no corpo e pelo vínculo epidemiológico pensei na hipótese de hepatite viral, provavelmente pelo vírus “A”. Não há tratamento específico para esta hepatite.
O paciente em questão desta crônica de viagem disse que curou-se com tomadas duas vezes ao dia, durante uma semana, de um punhado de carvão amassado com a parte amarela do ovo de galinha, além dos banhos com ervas. Minha avó mandava um quilo de suspiro por semana para minha casa. Eu recomendo repouso, hidratação. Se curou? O motorista acredita que sim. Eu tenho saudades da minha avó e de suspiros. E continuam a existir as mães pretas.
sábado, 15 de março de 2008
Gin tônica: como destilar vietnamitas (A Baía de Luanda)
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Um pouco de gim, uma rodela de limão, tónica e gelo a gosto. Vamos começar os autos.
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Escrevo primeiro sobre certas vietnamintas de Ho Chi Minh de tempos pós colonialistas, fugidas de alguma toca sórdida de Luanda Baixa e que vestem-se sem qualquer critério, seguram seus cigarros em mãos trêmulas e amavelmente sorriem àqueles que cruzam o seu vago olhar.
Escrevo ainda sobre certas angolanas que saem na surdina de seus musseques, sumariamente vestidas e com o rosto todo borrado de pó e ruge (nem de longe lembram bonecas de porcelana chinesa de outros tempos colonialista) e que carregam ao tiracolo seus brancos velhacos e desacreditados.
Escrevo por fim (ainda não) sobre expatriados de um país distante do outro lado e de cá e que conheceram-se há alguns meses, por intermédio de um aliciador comum (que intenso, não?) e que desejam muito falar de si, de ouvir novas histórias e sonhos, conversam sobre ceviches de peixes brancos e cervejas homónimas. E que lentamente vão cercando-se, eriçando suas penas de pavões em noites de núpcias e preparando-se para o bote. Casa, saudades, mãe, carinho, solidão, medo, angústia.
E então o lápis começa a devanear sofregamente sobre a folha de papel amarelada a ponto de querer machucá-la e decifrar no segredo das nódoas (“não, não, isso não é uma xícara de café, é mais uma outra dose de gin tónica”) uma resposta para uma pergunta simples e decisiva:
– Quantos estertores ainda serão precisos para constatar que ficaremos sentados a noite inteira neste sofá?
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(Existem os cargueiros a espera dos trâmites alfandegários na outra margem da Baía de Luanda abarrotados de gin tónica a apodrecer os ratos.)
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– Mais tônica, por favor!
quinta-feira, 13 de março de 2008
As negligenciadas – a história de um continente (parte 3)
Setembro de 2000. Organização das Nações Unidas. A Declaração do Milénio propôs oito metas desenvolvimentistas para o combate à fome, miséria extrema e doenças infecciosas, a serem cumpridas até o ano de 2015. A sexta meta é endereçada ao combate do HIV e aids, malária e outras doenças infecciosas. Vários organismos internacionais, muitos financiados pelo G8, suportam atividades de pesquisa com relação ao diagnóstico e tratamento destas doenças. E em termos e tempos de politicamente correto nada mais justo que renomear as “outras doenças”.
Doenças negligenciadas. África é o primórdio da origem das espécies, o continente negro e perdido, com todas as suas crenças, ritos, primitivismos, danças, cores, sons, dores, palco de outras veias abertas e que vão abrindo-se sempre e cada vez mais, dissecando nova tragédias, massacres, risos, lágrimas, enquanto isso em Darfur, e tem uns estrangeiros que andaram traficando pessoas no Chad, mas nem preciso ir muito longe, outros dias na província e haviam muitos refugiados/retornados sendo devorados pelo vírus, terra dos contrastes, o último modelo do veículo japonês ultrapassa a carroça puxada por um cavalinho seco, todas as antenas parabólicas sintonizam os sonhos e as ilusões do outro lado de lá (a vida não é laços de família e duas caras, muito menos escrava isaura e bbb, o rio de janeiro não é o espelho do Brasil, nem todo mundo é despertado por um rolex, 111 quer dizer algo?), o condomínio de luxo é invadido pelo musseque, é a loja da Hugo Boss que é sórdida e desbotada no meio da Rainha Ginga, acho que vou afastando-me e muito da varanda, enfim, são outras discussões.
África é o berço de boa parte das doenças negligenciadas, quase exclusivas dos países em desenvolvimento. Correspondem à sétima causa de anos de vida potencialmente perdidos, atrás das doenças cardíacas isquêmicas. São a úlcera de Buruli, as doenças diarréicas e cólera, a dengue, a dracunculíase, as treponematoses endêmicas (sífilis e pinta), a tripanossomíase africana (doença do sono), a leishmaniose, a lepra, perdão, a hanseníase, a filaríase linfática, a leptospirose, a oncocercose, a esquistossomose, a helmintíases e o tracoma. A doença de Chagas vai bem, obrigado e também é esquecida.
Estão nos compêndios tropicalistas e nos tratados de medicina interna, estáticas, peculiares, destrinchadas, classificadas, diagnosticadas com os métodos de ficção científicas e tratadas com o mais novo medicamento. Mas aqui o diagnóstico do HIV é baseado no teste rápido e ainda tenta-se transferir a prescrição dos anti-retrovirais aos não-médicos, a sífilis congénita fica por isso mesmo, a tuberculose nunca teve sua pompa romântica, os leprosos, perdão, os hansenianos continuam sem tratamento e com as mãos tornando-se garras, a atrofia é lenta e pouco dolorosa, os palúdicos sofrem as febres, as dores difusas, a esclera amarelando cada vez mais e as reservas de ferro sendo espoliadas com o auxílio de todos os ancilostomídeos (Dona Suzete, a mesma do gás que falhou está de repouso em casa porque teve nova recaída e ainda pagou 1000 kwanzas, aproximadamente 14 dólares, pela poliquimioterapia que era para ser gratuita). A cólera, a mesma das águas profusas e de arroz, enxuga 48 em mil nascidos vivos menores de um ano de idade. A poliomielite infantil tenta ser chutada para outros lados mas acaba mesmo tolhendo o direito das crianças de correr livremente pelos musseques. E perambula pela cidade uma geração de albinos do pós-guerra – bem, estes estão deslocados, porque são recessivos e não negligenciados (será?) – que deve ajudar com uns números para as estatísticas do câncer de pele.
Sim, tudo poderia ser diferente. Poderia haver diagnóstico sorológico do HIV e terapia anti-retroviral adequadamente prescrita, água para lavagem das mãos nos hospitais, tratamento para a sífilis e a hanseníase, melhor prescrição de antimalarianos, erradicação da poliomielite com ampla cobertura vacinal, saneamento básico, a guerra acabou, os tempos são de paz, a história de um continente é feita de muitas crianças barrigudas e de tantas outras bê-érre-êmes, afinal esta é a negligenciada tragédia africana.