não me recusei a dar prazer algum ao meu coração. (Ecl 2,10)
Este é o fim. A metáfora simples e sem elaboração do círculo fechando-se novamente, ano após ano, quando inicia-se a retirada, a revoada, o delírio migratório, o desalojar-se ou sei-lá-mais-o-quê, arranjar tudo nas malas, os presentes, as recordações de tempos que já foram e que ficarão guardados no baú das memórias que é o que chamamos de saudades e aperto no coração, os livros não lidos, jogar fora as anotações, as tralhas, os cupons fiscais, os mapas, abrir a sua agenda e encontrar uma foto em tons de sépia de uma aborígene que de repente entrou em sua vida, não bastasse a anamnese ser dirigida e eu vou escarafunchando sobre os costumes locais: segue-se toda uma história de perímetro de chineses e asfaltagens e órbitas, o senhor curou-me e devo-lhe a minha vida e por acaso a sua doença tem cura (não neste tom e com estas palavras) e eu por acaso sou onipresente minha senhora? virou minha paciente e eu que queria tê-las todas ao meu lado para o retrato da posteridade e vejo-me agora com ela e sua filha recém-nascida, ão há ninguém para ser testemunha ocular desta cena, somente eu e meus sonhos, a criança envolta em panos a boca procurando o alimento proibido pode pegá-la doutor, gostou do senhor, mas não tenho jeito com crianças, mas falávamos sobre retiradas, não é isso? sobre
voltar para casa,
mãe
ter pátria novamente
pai
volte
andar pelo centro descompromissadamente, pedir na padaria da esquina um sanduíche de pão com queijo branco e café com leite, rever os amigos, porque aí haverá um final de tarde na sacada de um prédio milimetricamente quadriculado, sob um sol que nunca apareceu mas sabemos que já se pôs e é nessa palheta de sombras que tudo será revelando quadro a quadro, sempre e cada vez mais e sentindo a acidez de uma discussão sobre Bergman e o sofrimento e a náusea que um Chet Baker pode causar – já imaginou umas velas iluminando e derretendo vagarosamente esta cena? E então é assim que entramos rapidamente na noite escura, quando retiro-me, arrumo as malas, empacoto os seus discos e os meus livros, apago do computador as memórias borradas e persecutórias de uma África que sempre tinha visto em fotos, algumas imagens valem mais que mil palavras, mas nem um dicionário com todos os sinônimos do mundo, em todas as línguas possíveis e inventadas seria capaz de expressar o que vi, senti, o que vivi e o que deixei de fazer, os sonhos, as frustrações, as angústias, os desejos e as partidas, o estar sozinho, a ausência de um retorno às chamadas telefônicas, meu escapismos dos dias turbulentos, minha sombra catártica das três da tarde, minha vontade de vomitar tudo e dizer gostei de você assim, a lágrima de quem menos espera-se, imaginar a sua vida uma biblioteca sem fim em que todos os livros são réplicas cortazianas do jogo infantil das pedrinhas (rayuella lembra arruela, a peça chave que segura a volta do parafuso, de maneira que tudo permaneça fixo, estável) e cada livro será um dia na sua vida frouxa na minha vida escapada na vida de todos nós e apenas o direito a uma situação, um ponto de partida, uma vivência, uma decisão, sim e não, direita ou esquerda, para cima ou para baixo e todas as situações decorrentes partirão deste marco zero, deste capítulo um, era um dia de sol e ele levantou-se, a partir de então começo, meio e fim, fim do dia, chega-se ao final e ele fechou os olhos e dormiu sonhos sonhados, para no dia seguinte retirar outro livro, o mesmo capítulo um, a sua escolha já foi feita, continuará a ser um dia de sol, mas a história seguirá pelo miolo, rumará para o final e voltará para o início, trata-se de uma outra leitura, não sei se prazerosa ou não, a mesma história os mesmos personagens, um novo caminho, que porra é o livre arbítrio, ter que escolher e afrontar (um tapa) e enfrentar (um soco bem no meio do estômago) as consequências (meu mundo cartesiano), brincar de cabra cega em terra de cegos, no terceiro dia ainda fará sol e no quarto dia haverá o mesmo capítulo solar. E todos os fins de tarde daqui para frente serão aquelas sinfonias de cigarras descompassadas presas as acácias em frente ao jardim de casa, depois a chuva e o cheiro de terra molhada.
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