quinta-feira, 4 de setembro de 2008

O perímetro das mumuílas

Preâmbulo
As histórias são muitas outras ainda, como a do hospital em Chibia, na Huíla, cuja ruas estão sendo asfaltadas pelos chineses e delimitando todo o perímetro no qual as mumuílas circularão pelas próximas semanas, cercando-as e deixando-as incomunicáveis, afinal,

– O cacimbo não foi tudo isso? O tempo do isolamento, dos três meses de seca, de agonia, de aperto, do céu nublado até as quatro da tarde, do sol das 16:59 que esconde-se novamente às 17:20, o tempo seco e cinzento das manhãs de junho e dos fins de tarde de agosto, o da incomunicabilidade, o dos silêncios velados? O tempo das partidas constantes, dos adeuses não ditos e esquecidos, as lágrimas que nunca saem mas estão lá na iminência da tempestade, o tempo da longa espera da tartaruga de patas para cima . . .
as quatro ruas que delimitam o perímetro urbano do município da Chibia, distante 42 quilômetros de Lubango (capital provincial), remetem-nos à época da colônia, quando o ajuntamento de casas, pessoas, histórias, (falta de) idéias, sonhos, frustações, poeira, mofo, fins de tarde nublados e noites frias, sóis, bandeiras da UNITA às seis da manhã, falta de água, cólera, paludismo, cabras, gado na estrada, devaneios, kimbos, lamentos sem umidade, mumuílas e pessoas conviviam pacificamente e tudo regido pelas suas leis no que era conhecido como Vila de João de Almeida. Porque o município percorre lentamente a sua órbita, dentro das suas próprias leis da física, que invertem a atração dos corpos facilitando a ocupação do mesmo espaço por mumuílas e forasteiros.

A cartografia do desejo
Este município é delimitado – e se depender dos chineses por pouco tempo – por quatro ruas. Na primeira rua, para quem chega pela estrada de terra esburacada e empoeirada, temos algumas casas antigas emboloradas por fora, com resquícios de pinturas em tons pastéis, algum comércio que vende tudo acima do câmbio oficial, a agência bancária e a casa de um senhor que faz ligações de longa distância.

A segunda rua – paralela à primeira – é onde concentra-se a polícia (Comando Geral de Chibia), a escola do ensino médio, de paredes vermelhas e o telhado de chapas de ferro descontínuas e oxidadas pelas chuvas torrenciais de março e que um dia foi um silo de grãos, além é claro, do serviço de saúde (Hospital Municipal de Chibia), o motivo principal de tudo isto aqui.
A terceira e quarta ruas, transversais às primeiras, alocam a Igreja, a Direção Administrativa com sua mesa interminável, as cortinas rosas com babados de renda amarela e as flores de plástico com defeitos na rebarba, os chineses e suas fotocopiadoras Konica e seus cenários de praia paradisíaca, deserta e pouco provável circundada por coqueiros azuis e gaivotas de madeira. Como esquecer então da pensão descompassada onde nada funciona, tudo é moroso e dos tremores sem fim dos funcionários palúdicos nas noites frias esaudosas de junho?

As órbitas
Isto seria tudo. A semana teria acontecido dentro das conformidades, sem maiores imprevistos, tudo ao seu tempo, lógica, não fosse a asfaltagem de todo o perímetro onde está localizado o Hospital Municipal da Chibia. O alvoroço foi descomunal. As crianças não sabiam se corriam atrás do caminhão de piche, se carregavam um pouco do magma betuminoso para dentro de casa e o adorassem como relíquia arqueológica ou se continuavam a empurrar os seus carrinhos de rodas de latas de tomate e eixos de cabides desmontados em meio às máquinas e sirenes dos tratores. As mulheres mumuílas permaneciam interrogativas à toda situação sem saber o porquê e o para quê de toda aquela confusão, embora uma delas – motivo de meus devaneios antropológicos (ou seria delírio persecutório?) – tenha deixado de lado no dia seguinte a sua atitude contemplativa perante o caos dos chineses e tivesse colocado a mão na enxada e ajudado a cavar um fosso para a tubulação do esgoto para o saneamento do dejetos do hospital, cavado em boa parte na base da enxada e do olhar fixo, vago, sedento e esfomeado dos seus três filhos.

A etnia dos mumuílas é uma das tribos que habitam esta região sudoeste de Angola. As mulheres mumuílas sempre estiveram presentes no hospital, anteriores à minha passagem, durante os trabalhos da semana e certamente por muito tempo após a minha partida. Diariamente elas visitam os seus tios com paludismo dentro da enfermaria sufocante de paredes sujas de terra e com o fio de luz tremido borrando as sombras dos doentes. Velam suas panelas extravazadas de maína (funge e leite azedo) e latas de água na sala de espera improvisada de troncos de eucaliptos em frente ao hospital. Contorcem-se silenciosamente nas dores do parto. Recebem o mosquiteiro das enfermeiras. Entregam seus filhos sem saber o porquê ao sacrifício das gotas da vacina da polio. E subitamente desaparecem para os kimbos. Para retornarem a velarem seus tios, visitarem suas panelas, contorcerem-se nos mosquiteiros todas as noites, receberem os seus filhos e reaparecerem durante a minha passagem.

Deparar-se com estas mulheres coloridas estimula qualquer tipo de devaneio antropológico e pode alterar toda órbita de quem aproxima-se delas, porque assim que o motivo impressionista começa a delinear-se (quem percebe quem e o quê) ambos começamos a encarar e despir-nos: eu de camisa branca, calça chino verde, cinto de fivela marrom (“está magro, meu filho, não precisava ter ido tão longe, nós te amamos tanto...”) e um óculos de sol numa tentativa infeliz de enxergar tudo com outros olhos. Ela, de sapatilhas rosas (relicários ocidentais), as samacacas (panos) numa mistura de cores e formas geométricas amarradas na cintura, com toda a capa de poeira e sujidade possível nos colares de miçangas cruzados entre os seios e na cintura. Ainda, outro adorno no pescoço de contas vermelhas e amarelas, pedras e conchas, além da mistura improvável de estrume e gordura de boi e óleo de ervas que divide em quatro mechas os cabelos, conferindo-lhes brilho e odor nauseante. Se pudéssemos tocaríamos um no outro, sinta a minha pele, tenho 60 anos e ela continua lisa, sinto é o seu cheiro, fale a minha língua, desculpa mas eu não sei falar este dialeto, então entenda o meu sofrimento, deixa-me fotografar com a senhora, quero kwanzas, não tenho, fico sem te fotografar, ou melhor de capturar num assalto e ficamos por isso mesmo. Subitamente despiu-se e veio para a fotografia. Talvez porque tivesse ingerido muito mais bulunga que habitualmente (fermentado de cana-de-açúcar e ervas utilizado em rituais). Porque estava feliz. Porque carregava o seu neto recém-nascido A senhora em questão carregava o seu neto recém-nascido nos braços e o levava para casa. Não, não nos tocamos, somos estranhos demais uns aos outros e para comigo.

As leis da física
No final da semana a asfaltagem de Chibia ainda não havia sido concluída. Soube-se que dentro de uns poucos dias chegariam o governador provincial e o ministro de uma pasta aí para inaugurarem a barragem municipal, também impedida de ser fotografada. Sobraram os chineses, alheios a tudo e metidos nos seus próprios eixos de rotação, desconhecendo desviar a órbita das mumuílas e permitindo-se a todo o desejo possível, inclusive o de ser fotografado.

9 comentários:

Unknown disse...

Dá-lhe garoto! Vc está ficando mesmo bom nisso! ... estive lá em Chibia ...
Mas vc ainda está devendo um devaneio antropológico mais extenso sobre o paludismo!
Aquele abraço e boa semana!

Unknown disse...

Oi Joao ..seu textos são sempre maravilhosos !!!
E ai ...quando voltas ? Ou será que volta ....
Tenho tanto pra te falar amigo ..novidades sobre aquele tempestuoso loval de trabalho em Taboão ... longas histórias ..necessidade de você por perto ....
Saudades amigo ...muitas saudades !

João Paulo Toledo disse...

Rui,

mas a Chibia não é um pouco disso tudo? Agora no Sumbe, Kwanza Sul, os chineses continuam asfaltando toda a Marginal e erguendo hospitais com manuais de instrução em mandarim.
Sobre o "devaneio antropológico mais extenso sobre o paludismo" talvez seja a hora mesmo, porque além de todas as fotos necessárias o infeliz viajante esqueceu-se do repelente e ganhei todas as picadas para poder entender a história natural da malária (não complicada!). Que venha a diarréia!

Jobove - Reus disse...

very good blog, congratulations
regard from Reus Catalonia
thank you

chibia1959 disse...

Saudações

Como filho da Chibia refugiado em Portugal desde 1975 fico muito satisfeito em saber que a Chibia encontrou o caminho do progresso!!
Alexandre Humberto Abreu

João Paulo Toledo disse...

"Chibia1959",

tem fotos de Chibia daquela época?
abraço,
João Paulo

sandra teixeira disse...

para:
"chibia1959"

ola meu nome é sandra teixeira,sou bisneta de BELMIRA ABREU ANTUNES que também era da chibia e como sei que a minha bisavo teve irmaos homens e o sobrenome de familia é ABREU fiquei curiosa com o seu sobrenome...
será que é parente???
nunca se sabe....

Anônimo disse...

Cara Sandra Teixeira

Conheci muito bem a Tia Belmira!
Sou neto de um irmão da Tia Belmira o João de Abreu Junior!
Lembro-me do primo Germano..., da prima Bira casada com o Mascarenhas....
Olha tc por oda.alexandreabreu@hotmail.com
saudações prima
alexandre abreu

Anônimo disse...

Cara Sandra

Depois de falar com o meu pai ele indicou-me mais uma filha da Tia Belmira, a Xana que morava em Sa da Bandeira

Alexandre