quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Três temas candentes

III. Os trópicos (luz do sol)
(às memórias de RR, já do outro lado)

O viajante depara-se com uma vitrine cheia de jóias, mas há uma em particular que prende a sua atenção logo que foca o olhar. Trata-se de um anel pequeno, bem delicado, de tom azulado, e com uma pedra incrustrada, será um rubi?

Melhore o foco, diz o técnico

surpresa maior quando aproxima-se da vitrine e percebe que o seu tesouro de deleite

– Pois então, doutor, trofozoítas, dois por campo,

nada mais que uma das formas do agente etiológico da malária, Plasmodium sp ou achavam que eu entendo de pedrarias?

Vejamos, recapitulação de uma outra negligenciada. No início a histeria coletiva do repelente, com a sua nuvem densa, asfixiante e pegajosa de permetrina, capaz muito mais de afastar quem está ao seu lado que o próprio anofelino, a chegada neste lado de cá, uma manhã bem quente já às cinco e trinta, a nuvem de mosquitos no aeroporto, a confusão toda à la Sir Livingstone logo na imigração, malas, passaportes, vistos, cartão de febre amarela, podemos ter todas as doenças menos esta, faça-me o favor doutor, endereços, saudades, solidão, ainda faltam 364 dias, então isto é a África? mas assim de repente? então tchau, depois “ser picado”, doutrina corporativista médica apanágio de todos os sintomas (im)possíveis e (in)imagináveis, paludismo para tudo e para todos com diarréia, tosse, unha encravada, mau olhado, saudades de casa e esquisitices outras, malária é para os casos graves, no final o anel continua sendo o mesmo, o fato é que brilha mais e intensamente em outras direções, querendo dizer que os órgão acometidos já serão outros. E se não for apenas uma questão de ótica o que é ouro de tolo – entenda-se artefato do exame – ganha cumprimentos de uma alquimia e transforma-se em mais anéis e daí começa-se a entender o porquê da resistência do plasmodium aos antimalarianos, será que porque os prescrevemos e-x-a-g-e-r-a-d-a-m-e-n-t-e ou porque só queremos e conhecemos este diagnóstico? Assim foram os primeiros trinta dias, as noites tchowkes, a ordem natural das coisas, com as suas espirais de permetrina queimando calmamente no quarto de hotel e lançando o seu fumo fétido e que impregnava toda a roupa e mala e idéias. Assim vieram os cem dias, muita saudades, a novidade dos mosquiteiros no meio do oásis sub-sahariano, as enfermarias miasmáticas com seus doentes quinínicos, o pavio da vela etc etc etc, aquela questão da Rosa Náutica ficou para trás, tenha (tinha, terei, tive) a certeza disso (ou não). Assim vieram mais trinta dias, as mumuílas autênticas peregrinando entre as paredes de mosquiteiros, uma pilha de “modos de montar” flanando na poeira do Lubango, os mosquiteiros doados pelos organismos internacionais, as prateleiras de coartem de todas as cores e sabores no memorial fúnebre das onze horas e passando pelo assassinato no hospital sem manual de instruções no Sumbe (estes chineses), revivendo os fumos saudosos transoceânicos depois de ter sido carregado às pressas para o quarto de hotel por uma nuvem de anofelinos, aqueles apontamentos malucos permeados de entrelinhas, de conversinhas paralelas e cifradas, aquele congresso internacional de restolhos do bloco socialista, o fumacê no condomínio, porque

Todas as canções que canto são para você, cariño

- Convulsionou, agora está delirando . . . deve ter comprometimento cerebral
- Então vamos prescrever artesunato endovenoso porq
- Não tem, não há, aqui não é assim

E então ele, que já vinha morrendo lentamente e desde sempre, que isolou-se com a família nas matas nos tempos da guerra, que sobreviveu às estacas de duas cores, onde a trilogia tchowke estava na parte dois, isso em Saurimo, das duas crianças que morreram de complicações do sarampo, morreu ali, na minha frente, eu de braços cruzados, atônito, perplexo, o capinzal amarelinho nos fundos do hospital metralhado coreografando aquela morte feliz e hedionda, vomitada de uma só vez sob o sol das doze horas (a metáfora solar), eu revirando a maleta de primeiros socorros na caminhonete (só tem dipirona), eu continuando a não entender mais nada eu querendo o beijo da minha mãe, a mãe chorando no corpo molhado de suor, o suor escorrendo da minha testa, as mumuílas aculturadas e azedas chorando na minha frente porque o teste é positivo, três horas arrebentando a coluna e as idéias na estrada minada, sete horas vezes não sei quantos dias mais para chegar até o beijo, cantei uma última vez para você e você não entendeu, o corpo sendo embrulhado com as veias entupidas de anéis. Eu de braços cruzados pensando trezentos dias para trás. Ou teria sido tudo apenas uma questão de ótica?

3 comentários:

Anônimo disse...

e já se foram 300 dias... quem diria... valeu a pena esperar... e valeu a lembrança!

Maricota disse...

amigo que demais tudo isso... amo vc

KImdaMagna disse...

Ilusão de óptica?
Gosto do lirismo impregnado de paludismos e realidades.Há no entanto a observância da alteridade,metaforiada clinica...
O "Verbo" assim exposto chega mais perto dos Kotidianos.

Apreensivo fico no entanto com o avanço acelerado da imunidade quimica, se bem julguei perceber.
Parabens, pelo belo texto, pois que o útil por si só já é belo.

Xaxuaxo