sábado, 16 de fevereiro de 2008

Moxico depois de dias

No terceiro dia fez sol em Luena.
Depois de dois dias nublados e de um frio noturnos suportável o sol surgiu assim, sem mais nem menos, seguindo a ordem natural das coisas e revelando por entre as sombras das acácias laranjas enfileiradas de ponta a ponta nas ruas esburacadas e sem fim as casas coloniais esquecidas e apinhadas de gente, pintadas em tons pastéis e desbotadas, com o mofo consumindo os tijolos e as conjuntivas.
Moxico é a maior província de Angola em extensão territorial, zona fronteiriça entre Zâmbia, Zimbábue e República Democrática do Congo, onde se vê com mais intensidade a mata de miombo, vegetação de savana da África Austral cortada por vários rios, o principal Luena e que dá nome à capital da província. E onde são discutidas segundo a hierarquia tribal as questões sobre a onda migratória dos elefantes e suas consequências para as estradas da região.
O hotel. Está na rua principal da cidade. É o único, construção modesta, sem maiores pretensões. Inicialmente construído nos tempos colonialistas, na década de 1960 e reativado em 1993. Parado no tempo. Dentro dos seus corredores intermináveis e labirínticos, com luzes de néon de açougue, a balaustrada toda empoeirada, os sofás de veludo roxo, os tapetes vermelhos rasgados, os ratos, as baratas, os gatos correndo pelos telhados, mais anofelinos para complicar a situação, percebe-se que Minotauro nunca vai sair dali eu daqui quatro dias e agora são horas de dormir primeiro ponto final.
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A janela do hotel serve como uma lupa para que se possa observar o microcosmo da cidade e o seu modus operandis. Logo cedo, os senhores de todas as idades vão posicionando-se na esquina, sentando-se de cócoras e conversando sobre a vida em geral. As crianças indo de mãos dadas para e escola trajando guarda-pós amarelados, as zungueiras vendendo carnes de caças e peixes secos enrolados, se essa lupa tivesse um volume escutaria-se sem dificuldades que o português castiço e incorrectível de Luanda rapidamente mistura-se à sons incompressíveis e todos começam a entender-se em tchowké. De repente são seis da tarde e o breu dominou a cidade (não há luz eléctrica nas ruas), são horas de deitar-se novamente.
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E foi em Luena que ouvi e vi as primeiras memórias da guerra, fato nunca a ser consumado, as sedes da UNITA, da MPLA e da FNLA (devem ter sido tantas as catanas que todas as bandeiras angolanas hasteadas pela cidade e nas estampas dos rapazes não seriam capazes de devolver todas as vidas e os sonhos de uma Angola libertária e libertada, qualquer sonho). E isto não foi tudo: existem as sedes provinciais que não se permitem às fotografias de um simples viajante e que quase chegam a custar a câmera, os tanques de guerra e os seus restos pela estrada, os carros de desminagem e as zonas proibidas, a Estrada de Ferro Benguela – Luena desativada e destruída, as paredes metralhadas,
E a senhora estava aqui no dia em que o Savimbe morreu? Sim, estava em casa e de repente vi sair para outros sítios uma carga encaixotada em metais com toda a cidade em volta parecia um animal e todo mundo s`amontoando em frente ao Cine, aquilo foi uma loucura do género! E a capitulação do Savimbe aconteceu no dia 22 de Fevereiro de 2002 e hoje está enterrado no Cemitério Municipal, sem mais plaqueta alguma de identificação, no Cemitério Municipal e de todos os nomes e de muitas histórias enterrado ele junto com suas macabrices
(e outra memória triste também: os sequelados das minas e da poliomielite, afinal a luta de Sabin são lembranças de outro combate não menos cruel e extirpante, e ainda os retornados do lado de lá, que são os refugiados para a Zâmbia, e deste lado tudo permanece como sempre foram, sem moradia, sem alimentação e escavados com uma intensidade veloz pelo vírus, de modo que não se sabe o que é que mata mais, se o paludismo, a tsé-tsé, a cólera, a desnutrição ou o básico assim: o analfabetismo, o descaso, a ignorância, a corrupção ou simplesmente as coisas são o que são ponto final).
Ah, o Cine Luena? Restou só um prédio velho, com os portões enferrujado (chove muito por estas épocas) e um letreiro banguela e provavelmente muitos enlatados da Propaganda esquecidos em alguma prateleira mas vivos na memória dos mais velhos.
E então chegamos à Praça da Bauca, mercado local à céu aberto, muitas barracas e estrados no meio de lixo e outros sequelados de kwashiokor com os olhares desolados, tristes, muito tristes. E fundos. Os peixes secos são vendidos à grosso. O rio Luena é muito fértil e logo ali, disse um dos motoristas, quando chove os bagres acumulam-se nos buracos das estradas: no cacimbo [estação das secas] eles pulam e são esmagados pelos caminhões ou pescados pelos das comunas. O mel é terapêutico, por via das dúvidas compra-se uma garrafa. As carnes de caça são abatidas em outros lugares e vendidas todas as partes ainda frescas, as moscas também querem participar da carnificina e toda aquela aula de anatomia ali exposta, onde cada parte é renomeada na língua local e o que é que este chyndele (branco) faz por aqui?
São horas de voltar para casa setenta minutos depois os tristes musseques zincados e empoeirados (seriam ocas de barro?) vão surgindo por entre nuvens e a Baía de Luanda ao fundo. Ficou para trás, perdida no tempo e tentando organizar-se na memória, a Angola arcaica e provinciana, confundida com a moderna e provincial.
Foi assim que eu vi Moxico em quatro cansativos dias de trabalho.

Um comentário:

Anônimo disse...

João, é realmente uma pena o que acontece na África. Segundo um artigo internacional que li, Angola previa produzir dois milhões de barris de petróleo por dia até o fim de 2007 e manterá este nível de produção até 2012, segundo a companhia estatal Sonangol. No entanto, apesar de um crescimento sustentável, alimentado pela disparada das cotações do petróleo, 70% dos 16 milhões de angolanos vivem em um estado de extrema pobreza, com menos de dois dólares por dia. Entende-se que Angola é um dos 10 paises mais corruptos do mundo...
Talvez daqui a pouco angolanos e brasileiros terão uma característica em comum a comentar.
Abraços,
Gustavo.