quinta-feira, 13 de março de 2008

As negligenciadas – a história de um continente (parte 3)

(final)
Setembro de 2000. Organização das Nações Unidas. A Declaração do Milénio propôs oito metas desenvolvimentistas para o combate à fome, miséria extrema e doenças infecciosas, a serem cumpridas até o ano de 2015. A sexta meta é endereçada ao combate do HIV e aids, malária e outras doenças infecciosas. Vários organismos internacionais, muitos financiados pelo G8, suportam atividades de pesquisa com relação ao diagnóstico e tratamento destas doenças. E em termos e tempos de politicamente correto nada mais justo que renomear as “outras doenças”.
Doenças negligenciadas. África é o primórdio da origem das espécies, o continente negro e perdido, com todas as suas crenças, ritos, primitivismos, danças, cores, sons, dores, palco de outras veias abertas e que vão abrindo-se sempre e cada vez mais, dissecando nova tragédias, massacres, risos, lágrimas, enquanto isso em Darfur, e tem uns estrangeiros que andaram traficando pessoas no Chad, mas nem preciso ir muito longe, outros dias na província e haviam muitos refugiados/retornados sendo devorados pelo vírus, terra dos contrastes, o último modelo do veículo japonês ultrapassa a carroça puxada por um cavalinho seco, todas as antenas parabólicas sintonizam os sonhos e as ilusões do outro lado de lá (a vida não é laços de família e duas caras, muito menos escrava isaura e bbb, o rio de janeiro não é o espelho do Brasil, nem todo mundo é despertado por um rolex, 111 quer dizer algo?), o condomínio de luxo é invadido pelo musseque, é a loja da Hugo Boss que é sórdida e desbotada no meio da Rainha Ginga, acho que vou afastando-me e muito da varanda, enfim, são outras discussões.
África é o berço de boa parte das doenças negligenciadas, quase exclusivas dos países em desenvolvimento. Correspondem à sétima causa de anos de vida potencialmente perdidos, atrás das doenças cardíacas isquêmicas. São a úlcera de Buruli, as doenças diarréicas e cólera, a dengue, a dracunculíase, as treponematoses endêmicas (sífilis e pinta), a tripanossomíase africana (doença do sono), a leishmaniose, a lepra, perdão, a hanseníase, a filaríase linfática, a leptospirose, a oncocercose, a esquistossomose, a helmintíases e o tracoma. A doença de Chagas vai bem, obrigado e também é esquecida.
Estão nos compêndios tropicalistas e nos tratados de medicina interna, estáticas, peculiares, destrinchadas, classificadas, diagnosticadas com os métodos de ficção científicas e tratadas com o mais novo medicamento. Mas aqui o diagnóstico do HIV é baseado no teste rápido e ainda tenta-se transferir a prescrição dos anti-retrovirais aos não-médicos, a sífilis congénita fica por isso mesmo, a tuberculose nunca teve sua pompa romântica, os leprosos, perdão, os hansenianos continuam sem tratamento e com as mãos tornando-se garras, a atrofia é lenta e pouco dolorosa, os palúdicos sofrem as febres, as dores difusas, a esclera amarelando cada vez mais e as reservas de ferro sendo espoliadas com o auxílio de todos os ancilostomídeos (Dona Suzete, a mesma do gás que falhou está de repouso em casa porque teve nova recaída e ainda pagou 1000 kwanzas, aproximadamente 14 dólares, pela poliquimioterapia que era para ser gratuita). A cólera, a mesma das águas profusas e de arroz, enxuga 48 em mil nascidos vivos menores de um ano de idade. A poliomielite infantil tenta ser chutada para outros lados mas acaba mesmo tolhendo o direito das crianças de correr livremente pelos musseques. E perambula pela cidade uma geração de albinos do pós-guerra – bem, estes estão deslocados, porque são recessivos e não negligenciados (será?) – que deve ajudar com uns números para as estatísticas do câncer de pele.
Sim, tudo poderia ser diferente. Poderia haver diagnóstico sorológico do HIV e terapia anti-retroviral adequadamente prescrita, água para lavagem das mãos nos hospitais, tratamento para a sífilis e a hanseníase, melhor prescrição de antimalarianos, erradicação da poliomielite com ampla cobertura vacinal, saneamento básico, a guerra acabou, os tempos são de paz, a história de um continente é feita de muitas crianças barrigudas e de tantas outras bê-érre-êmes, afinal esta é a negligenciada tragédia africana.

Um comentário:

Anônimo disse...

oi querido João,
estou aqui na Ruca e acabei de falar com vc pelo telefone...saudades! apertou ainda mais ao ler alguns trechos do seu diário!
parece que te vi agora, aqui do meu lado, até ouvi sua risada leve e doce!
te admiro
com amor da sua sempre amiga
Lela