terça-feira, 4 de março de 2008

Os negligenciados – vida e morte de uma criança (parte 2)

(continuação)

Olhem criteriosamente para estas crianças. Eu tenho visto muitas delas por estes tempos. Não são saudáveis. Acreditem. Tomemos uma delas por um breve momento de sua vida.

Ela tem os olhos fundos e desolados, os cabelos sem brilho e quebradiços, os membros finos e raquíticos (no seu sentido mais puro), o abdome é globoso, às custas de toda a fauna unicelular e achatada a qual ela terá direito na sua curta vida e toda a proteína que lhe será negada de direito. Não frequentará a escola, afinal aqui mais de 33% são analfabetos, sem contar os funcionais. Se for à escola terá seríssimos problemas de aprendizagem, dificuldades para somar e subtrair e para fazer-se entender. (Nenhuma sinapse sobrevive à falta de gordura).

Ela foi colocada de lado pela mãe quando seu irmão mais novo nasceu. Foi desmamada precocemente. Não ingeriu todos os nutrientes que precisava. Em Gana seria o protótipo perfeito, porque lá, a sina de ser deixada de lado, em língua local, chama-se kwashiorkor.

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(E então este tópico do quarto ano da Faculdade de Medicina fica desta maneira, sendo revisto mais intensamente nestes lados que quando foi-me apresentado há sete anos, nas páginas do Tratado de Pediatria, na periferia de São Paulo e nas zonas ribeirinhas de Santarém, no Pará, com nome, desnutrição, sobrenome, proteico calórica, e sinonímia, kwashiorkor.)

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Não foi à escola. Não cresceu. Não comeu adequadamente. Andou por aí, à toa e somente por aí, brincando e comendo terra, brincando e esvaindo-se em águas profusas e de arroz, brincando e morrendo de tétano. Foi deixada de lado pela mãe (a releitura de uma tragédia grega com outra cor local?). E morreu, assim como outras 260 a cada mil que nascem por aqui – e o que são estatísticas para o burocrata que pensa que o seu carimbo vai alterar a rotação do mundo? (são números, oras!). Podia ter sido filho de B.R.M, 43 anos, negra, angolana, semi-analfabeta, soropositiva e negligenciada.



3 comentários:

Anônimo disse...

Naliz,
Fazia tempo que não vinha ao seu blogue. Achei interessante a mistura de referenciais diferentes: um certo tom bíblico, apocalíptico (Eu tenho visto muitas delas por estes tempos.
Tomemos uma delas por um breve momento de sua vida.
Foi desmamada precocemente.), restos das leituras da faculdade de medicina (livros, tratados de saúde coletiva) e um pouco de Chico Buarque (Não foi à escola. Não cresceu. Não comeu adequadamente. Andou por aí, à toa e somente por aí, brincando e comendo terra, brincando e esvaindo-se em águas profusas)... Meu guri!!!! Continuo gostando e também esperando o jato. Rs.
Abraços

Anônimo disse...

Lembra disso!


"Há um vilarejo ali
Onde areja um vento bom
Na varanda, quem descansa
Vê o horizonte deitar no chão

Pra acalmar o coração
Lá o mundo tem razão
Terra de heróis, lares de mãe
Paraiso se mudou para lá

Por cima das casas, cal
Frutas em qualquer quintal
Peitos fartos, filhos fortes
Sonho semeando o mundo real

Toda gente cabe lá
Palestina, Shangri-lá
Vem andar e voa
Vem andar e voa
Vem andar e voa

Lá o tempo espera
Lá é primavera
Portas e janelas ficam sempre abertas
Pra sorte entrar

Em todas as mesas, pão
Flores enfeitando
Os caminhos, os vestidos, os destinos
E essa canção

Tem um verdadeiro amor
Para quando você for"

Unknown disse...

Ler seu blog esta sendo mais do que apenas saber do diaadia do meu amigo.. ta sendo um aprendizado, uma experiencia deliciosa ... parabens pela preciosidade da escrita, a capacidade de nos prender ao texto e de instigar a vontade de conhecer mais sobre esse lado de lá do oceano tao esquecido ...
Miss you !
Fe benatti