domingo, 16 de novembro de 2008

Três temas candentes

I. Óbitos (fim de partida)

Morre-se sempre e em qualquer lugar. As causas são as mais variadas e de fundamental importância, haja visto as estatísticas gritantes, aceleradas e recentes dos órgão internacionais. Pode-se morrer por complicações decorrentes do infarto agudo do miocárdio, de choque séptico por gram negativo numa puérpera cujo obstetra esqueceu-se de trocar as luvas (sim, Semmelweiss, isto ainda acontece), de malária cerebral (os trópicos), de choque hipovolêmico por diarréia colérica (as águas salobras que escorrem pela Baixa), de insuficiência respiratória por pneumonia lobar com derrame pleural por Staphylococcus aureus, traumatismos externos (acidentes automobilísticos, paixonites agudas e afins, entenda-se afundamento da calota craniana com perda de massa encefálica), morre-se de morte morrida, de desgosto, de saudades, de solidão, por amor, envenenando-se um ao outro numa ciranda interminável de paixões, pulando em alto mar atrás de um corpo, atirando-se em frente da locomotiva, recebendo envelopes roxos, por quê não estudou-se ainda a função social das pontes e viadutos na vida abreviada dos suicidas? Tudo isto para lembrar que há muito tempo morreu-se na Rainha Ginga e pela sacada do prédio decrépito viu-se o cortejo fúnebre arrastando-se pelo engarrafamento nosso de cada dia, a família do morto seguindo logo atrás remoendo as dores entre lágrimas de uns e o canto invertido das zungueiras carpideiras que também carregavam os seus mortos pescados na Corimba desde cedo. Num outro momento, em Saurimo, enquanto íamos à pé para o hotel passamos em frente a uma casa, era uma segunda-feira nublada, a família do morto reunia-se embaixo de uma frondosa mangueira, imperava um silêncio ruminoso e triste, um silêncio cinza, cinza ficou o céu por seis meses, o cacimbo, o funge cozendo lentamente na panela, os parentes dos parentes, os amigos dos amigos, o retrato do morto (jovem, muito jovem) na mesa com uma toalha de cetim roxa, uma senhora com todos os seus panos negros sentada com o olhar imóvel, numa outra oportunidade em Sumbe o morto sendo retirado da morgue assim mesmo, nu, com os curativos no abdome, um pano esgarçado cobrindo-o e colocado na carroceria da caminhonete, as cinco mulheres gritando desesperadamente, a rua de terra batida levantando toda a poeira possível que nem a senhora albina seria capaz de conter com sua vassoura de piaçava estraçalhada, todos os dias nas páginas do Jornal, fulano de tal faleceu, deixa saudades, familiares cumprem o doloroso dever de participarem o falecimento de etc etc etc. Tudo isto para lembrar que o óbito por vezes é uma instituição angolana difícil para a compreensão do estrangeiro, sejam pelos dias de trabalho perdido, pela maneira como a morte é encarada ou como morre-se por aqui.

5 comentários:

F. disse...

Voce ja ouviu o obituario narrado? Na radio nacional, de quando em quando, a titulo de servico de utilidade publica, eles leem os anuncios de obito dos jornais... (desculpe a falta de acentos, estou num teclado que nao foi alfabetizado em portugues).

João Paulo Toledo disse...

F.,

sim, eu já ouvi este obituário narrado na mesma Rádio Nacional que anuncia os vôos diários (e quase sempre cancelados) para as províncias. Faltou citá-los, obrigado pela lembrança.
João Paulo.

Hugo Rebelo disse...

é um pouco bizarra essa realidade... acho. espaço muito interessante este, de debate.

saudações


http:\\coresemtonsdecinza.blogspot.com

Anônimo disse...

Oi João! Primeira vez que venho dar uma olhada no seu blog e fiquei maravilhada com essa sua experiência e a maneira como vc conta; os textos e as fotos são incríveis! Saudades de vc....

João Paulo Toledo disse...

Amelinha,
por onde você anda?
mande um email.
Um beijo,
João.